Uma espécie de animal ou planta exótica é levada até um território novo, de onde ela não é natural. Nesse território ela não tem predadores e encontra alimento com facilidade. Então, essa espécie se instala e prolifera rapidamente. Nos casos mais graves, ela causa danos econômicos, modifica o ambiente e compete com as espécies nativas, que podem até ser extintas.
Esse é um cenário de invasão biológica, ou bioinvasão, apontada como a segunda maior causa de perda de biodiversidade no mundo. No Brasil existem quase 500 histórias como essa, espécies que não ocorrem no País naturalmente, mas foram introduzidas e desequilibram o ecossistema brasileiro. E a situação pode ficar ainda mais crítica: um estudo publicado na revista Global Change Biology indica que o número de espécies invasoras pode crescer mais de 35% até 2050.
De exótica a invasora
Espécies exóticas são todas aquelas que não são originárias de determinado ambiente, ou seja, vivem fora de sua área de distribuição natural. Elas são transportadas de maneira intencional para fins como agropecuária e ornamentação, ou de maneira acidental, fixadas em cascos de embarcações e misturadas a mercadorias, por exemplo.
Mas nem toda espécie exótica é invasora. “A gente convive com muitas espécies exóticas e só uma pequena parte acaba se tornando invasora”, conta Vânia Pivello, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e pesquisadora do Laboratório de Ecologia da Paisagem e Conservação (LEPaC).
Muitas delas até são transportadas, mas por incompatibilidades biológicas e ambientais não conseguem se estabelecer. Quando a espécie se adapta ao novo território, prolifera e passa a representar riscos ao ecossistema nativo, então ela pode ser caracterizada como invasora.
Vânia explica que a invasão é favorecida por semelhanças ambientais entre o local de origem e o ocupado e características como altas taxas de reprodução. Interações com a cadeia alimentar também podem conferir vantagens. “Como eles vêm de um outro lugar e conviviam com uma comunidade de bichos e plantas que é diferente do novo local, muitos não têm predadores naturais, isso facilita que eles se instalem”, afirma a professora.
O mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei), um dos invasores mais conhecidos no Brasil, é um exemplo de animal com algumas dessas características. Ana Lúcia Brandimarte, também professora do IB, conta que a espécie é nativa do sudeste asiático e foi transportada em navios para a América do Sul de maneira acidental na década de 1980.
“As larvas são transportadas em qualquer pouquinho de água e os adultos se fixam em qualquer tipo de substrato. Eles conseguem se reproduzir muito rapidamente e não têm predadores naturais em nossos ambientes”, diz a professora. Ela conta que esses organismos também apresentam muita tolerância a fatores ambientais, como variações de temperatura, concentração de oxigênio e salinidade da água. Com essas características, o mexilhão pôde se adaptar e se espalhar. Hoje ele é encontrado em boa parte do território brasileiro.
O javali (Sus scrofa) também é um invasor popular que se estabeleceu e proliferou em território brasileiro. No caso do suíno, entretanto, sua introdução se deu de maneira intencional. Originários da Eurásia e Norte da África, os javalis foram inicialmente levados para Argentina e Uruguai para a prática da caça. A invasão do Brasil ocorreu por volta da década de 1980 após se espalharem por esses países.
“Na década de 1990 teve a tentativa de criação do javali para fins comerciais no Brasil como uma carne nobre”, conta Adriano Chiarello, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) de Ribeirão Preto da USP. “Mas isso não deu muito certo e muitos criadores acabaram desistindo da criação e liberando esses animais na natureza.” Atualmente o Brasil é povoado por javalis puros, porcos domésticos e “javaporcos”, resultado do cruzamento entre os dois. “É uma espécie que está em franco processo de expansão”, acrescenta Chiarello.
Impactos ambientais e econômicos
“No processo de invasão, você tem esses animais e plantas exóticos que estão usando recursos que seriam das espécies nativas. Com isso, elas ficam em desvantagem e acabam, muitas vezes, sendo até extintas”, explica Vânia sobre um dos riscos da bioinvasão. É por isso que essa é a segunda maior causa de perda de biodiversidade no mundo, atrás apenas do desmatamento.
“É muito ruim perder as espécies do seu ambiente. Cada uma tem um papel ecológico muito importante”, comenta a professora. As invasoras muitas vezes não desempenham o mesmo papel ecológico que as nativas, o que gera um desequilíbrio no ecossistema.
Vânia mostra um exemplo: o capim-gordura (Melinis minutiflora). A espécie é originária da África e foi trazida ao Brasil para ser utilizada como pasto. Então, o capim se espalhou pela área de cerrado e prevaleceu sobre as gramíneas nativas. E não para por aí: “Existem algumas aves que comiam as sementes do capim nativo e não comem a semente do capim-gordura. Essas aves já estão extintas ou em processo de extinção”, conta a professora. A espécie também está ligada ao aumento da temperatura de queimadas no cerrado.
A dispersão do capim-gordura foi facilitada pelo javali, que está na lista da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) como uma das 100 espécies invasoras mais danosas do mundo. “É uma espécie grande que vive em bandos e come de tudo: milho, mandioca, abóbora, cana, soja e pode predar filhotes de outros animais”, explica Chiarello. Seu hábito alimentar facilita que sementes desses vegetais sejam levadas a outras áreas e ainda prejudica plantações e zonas agrícolas.
O animal também tem o hábito de chafurdar na terra e na lama. “Esse comportamento acarreta o pisoteamento de plântulas que pode interferir na reprodução vegetal, especialmente de plantas associadas com nascentes e pequenos cursos d’água”, afirma o professor. “No Brasil isso é preocupante porque ele pode interferir no processo de restauração das Áreas de Proteção Permanente”, acrescenta.
Além dos danos ao ecossistema, os invasores também estão relacionados a prejuízos econômicos. Um levantamento realizado nos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, África do Sul, Índia e Brasil indica que a invasão de animais, plantas e micro-organismos é responsável por um prejuízo anual de US$ 336 bilhões.
Ana Brandimarte recupera o exemplo do mexilhão-dourado: “Tem uma série de impactos sobre estruturas, por exemplo, o entupimento de filtros em usinas hidrelétricas e estações de tratamento de água”, afirma. “Isso leva à necessidade de parar a turbina, o que resulta na diminuição da produção. Em 2019, a CTG Brasil [empresa especializada em usinas hidrelétricas] estimou um prejuízo anual de R$ 400 milhões no setor elétrico em função da presença do mexilhão-dourado.”
As espécies invasoras também têm implicações na saúde humana. O mosquito da dengue (Aedes aegypti), por exemplo, é originário da África e foi disseminado acidentalmente pelo ser humano. No caso do mexilhão, “como eles são filtradores, podem acumular metais pesados e substâncias tóxicas que posteriormente serão consumidas pelos peixes e podem atingir a população humana que se alimenta de pescado”, explica Ana.
Prevenção e preservação
“A introdução de plantas, animais e outros organismos além de sua área de distribuição natural tem sido cada vez mais facilitada por meio do transporte, comércio, viagens e turismo entre diferentes regiões”, alerta o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em seu site.
Para conter esse processo, os três pesquisadores ressaltam que é essencial acompanhar as espécies e, quando necessário, intervir antes que seja tarde demais. “Quanto mais espalhada a espécie está, mais difícil de você lidar com ela. É muito mais fácil prevenir ou logo no comecinho ter ações rápidas para combater aquela invasão”, avalia Vânia.
Essa prevenção não ocorreu no caso do mexilhão-dourado: “A possibilidade de resolver as questões que envolvem o mexilhão é bastante baixa. Em um caso como esse, a prioridade seria a prevenção da chegada e dispersão, e não a posterior erradicação, que é o que nós vamos tentar fazer”, afirma Ana.
O cenário do javali é semelhante. “Erradicar esse animal, tirá-lo completamente do ambiente, é praticamente impossível, tendo em vista a expansão”, afirma Chiarello. “O que se tenta é um controle populacional para mitigar o dano econômico e impedir que o bicho atinja altas populações especialmente em áreas protegidas.”
Os exemplos do javali e do mexilhão-dourado são especialmente importantes. Essas espécies, junto com o coral-sol, foram definidas como prioritárias na Estratégia Nacional para Espécies Exóticas Invasoras e seu Plano de Implementação, que segue diretrizes da Convenção sobre Biodiversidade Biológica (CDB).
Os pesquisadores também defendem a importância do mapeamento e acompanhamento das espécies exóticas com potencial de invasão. “Se você já sabe que aquela espécie é invasora em algum lugar semelhante ao seu, você já fica de antena ligada”, explica Vânia. “A recomendação é: ‘até que se prove o contrário, vamos controlá-las’. Na medida em que estudos vão saindo, a gente pode rever a necessidade ou intensidade desse controle”, acrescenta Chiarello.
O professor também ressalta que esse mapeamento é importante para que todos os impactos sejam conhecidos. Ele cita o caso da lebre-europeia (Lepus europaeus), espécie invasora tema de algumas de suas pesquisas. Segundo ele, o animal não possui impactos significativos em determinadas regiões. “Na Argentina, que tem uma proximidade com seu hábitat natural, ela tem causado danos. Aqui no Brasil, há poucas evidências de que isso esteja acontecendo.”
No Brasil, o Instituto Hórus é uma das referências no que diz respeito a esse acompanhamento. O instituto possui uma base de dados que inclui mais de 450 espécies exóticas invasoras. Nela estão disponíveis informações sobre a dispersão, impactos e formas de controle.
Cada espécie invasora exige medidas diferentes. No geral, as soluções passam pela caça, captura ou coleta, como no caso do javali, e por alternativas químicas como herbicidas, caso do capim-gordura. Esse manejo deve ser feito com muito cuidado para não prejudicar as espécies nativas.
Para evitar mais casos de bioinvasão, Chiarello também ressalta a importância da preservação dos ambientes. “A gente precisa ter uma visão crítica e conhecer as causas fundamentais, não adianta nada a gente atacar o javali se a gente não pensar no que favorece a entrada desse animal. Se a gente mantém nossos biomas intactos e sadios, a gente tem uma mitigação dessa expansão. Esse é o ponto: o papel do ser humano em favorecer a entrada de invasores. Nós estamos transformando o planeta.”
Vânia lembra que a invasão não ocorre somente entre países. “Se você trouxer uma árvore da Amazônia para a Mata Atlântica, ela vai ser invasora da Mata Atlântica”, explica, mesmo que ambos os biomas estejam em território brasileiro. A professora orienta que a população tenha cuidado com o transporte de animais. “O melhor a fazer é não ficar levando espécies de um lugar para o outro.”
“Eu vou passear na casa da vovó, vejo uma planta linda e levo para o meu outro Estado. Essa planta pode criar um problema. Se não for ela, podem ser os insetos ou micro-organismos que estão nela”. O mesmo conselho serve para os pets, que não devem ser soltos na natureza. “As pessoas têm que ter cuidado com o que trazem e também não ficar soltando ou plantando por aí”, conclui Vânia.
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