Demência do pugilista pode ser confundida com outras doenças psiquiátricas

O principal fator de risco são os traumas repetitivos na cabeça; seu diagnóstico costuma ser complexo durante a vida do paciente

 13/12/2022 - Publicado há 1 ano
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Pancadas na cabeça são o principal fator da demência do pugilista – Foto: Hermes Rivera / Unsplash

 

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A encefalopatia traumática crônica, também conhecida como demência do pugilista, é uma doença neurodegenerativa que é provocada ou desencadeada por repetidos traumatismos na cabeça ou no crânio. Alguns boxeadores famosos, como os brasileiros Maguila e Éder Jofre e o estadunidense Muhammad Ali, desenvolveram a doença ao longo de suas carreiras. Porém, não são apenas os lutadores que podem desenvolver esse tipo de encefalopatia e seus sintomas podem ser confundidos com outros tipos de doenças cerebrais.

Vitor Tumas – Foto: Reprodução/LinkedIn

O médico, professor e pesquisador Vitor Tumas, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, especialista na área de Neurologia, especialmente nas áreas de Transtornos do Movimento e Neurologia Comportamental, explica que a encefalopatia traumática crônica foi inicialmente descoberta em lutadores de boxe no início do século 20, mas atletas de outros esportes que possuem repetitivos traumas na cabeça, como o rugby, o futebol americano e até mesmo o futebol, podem ser alvos da doença. Segundo Tumas, ela também foi descrita em veteranos militares que participaram de treinamentos em áreas de conflito ou propriamente em conflitos bélicos.

Tumas e outros especialistas no assunto acreditam que a encefalopatia traumática crônica seja causada pela exposição repetitiva ao traumatismo de crânio, como uma pancada, um golpe, uma sacudida violenta na cabeça, que faz com que o cérebro se mova bruscamente dentro da caixa craniana. “Esse tipo de movimento súbito de aceleração e desaceleração pode provocar estiramento das fibras nervosas, romper pequenos vasos e causar pequenas lesões no tecido cerebral. Esses traumatismos são mais evidentes na chamada concussão cerebral, quando, logo após o trauma, o paciente fica meio confuso, desorientado ou perde os sentidos por alguns segundos”, afirma o pesquisador.

Os repetitivos traumas, segundo Tumas, vão provocando um acúmulo de alterações que desencadeiam um processo inflamatório. A partir de um certo ponto, isso começa a provocar a deposição de diversas proteínas anormais no cérebro, sendo a principal a TAU fosforilada. Esse processo, a longo prazo, se torna irreversível e progressivo.

Sintomas, relações com outras doenças cerebrais e diagnóstico

Os sintomas gerais provocados pela demência do pugilista são tonturas e dores de cabeça crônicas. O paciente também pode desenvolver sintomas mentais como perda de memória e dificuldade de raciocínio, além de problemas motores como lentidão, rigidez dos músculos, alterações na fala e desequilíbrio. Segundo Tumas, as características principais são alterações comportamentais de depressão, ansiedade, agressividade, impulsividade e até paranoia.

“Os sintomas da doença podem imitar muito as doenças psiquiátricas, como o Alzheimer, em várias fases do acometimento, e os pacientes têm uma tendência muito forte ao suicídio. Esses sintomas começam leves e vão evoluindo progressivamente e o paciente vai ficando cada vez mais comprometido e dependente. Por causa dessa complexa combinação de sintomas e o histórico de traumatismos cranianos repetitivos, pode ser a chave para se pensar no diagnóstico”, explica Tumas.

O diagnóstico da doença ainda é complicado. Conforme explica o professor, ainda não existem exames que confirmem um diagnóstico clínico durante a vida do paciente, ele é totalmente baseado na suspeita clínica e no histórico de traumatismo de crânio repetitivo. “Geralmente, a doença costuma afetar adultos e idosos, com início dos sintomas ainda na fase adulta. Existem alguns casos também de jovens que desenvolveram a doença. A frequência ainda não é bem estabelecida, e depende do diagnóstico por autópsia”, explica o professor.

Prevenção e diminuição de sintomas

O principal fator, alerta Tumas, é a prevenção do problema, uma vez que a doença não tem cura. Quem pratica esportes de risco como lutas, rugby, futebol americano e o futebol deve ter atenção a esse problema e ser orientado a tentar reduzir o impacto desses traumas.

Um fato importante, por exemplo, é que há mais risco para desenvolver a encefalopatia traumática crônica se o intervalo entre um traumatismo e outro for muito curto, por exemplo, quando um jogador de futebol bate a cabeça, continua jogando e tem outro traumatismo no mesmo jogo. “Por isso hoje há uma recomendação para que sempre que algum jogador tenha um trauma na cabeça, mesmo que seja aparentemente discreto, ele precisa de atendimento imediato. Caso haja uma concussão nítida, ele deve sair do jogo para evitar um novo trauma em curto espaço de tempo”, explica o professor.

O médico e pesquisador alerta que é sempre importante que familiares, ou o próprio paciente que desenvolve sintomas característicos desse tipo de encefalopatia, procurem um médico e citem que foi exposto aos traumatismos de crânio durante um período da vida. A doença ainda não tem um tratamento específico ou maneiras de bloquear sua progressão, a intervenção é na tentativa de amenizar os sintomas.

Durante a fase inicial, segundo o professor, é mais fácil controlar a doença com o uso de medicamentos. Já nas fases avançadas, é um quadro de demência muito mais difícil de ser contido. “Veja que o mais importante é prevenir o problema, até porque não sabemos qual é o ponto de conversão, de virada, de quando aquele número de traumatismos  se transforma num quadro definitivo”, afirma Tumas.

Fatos curiosos sobre a doença

O professor Tumas conta uma história interessante, relacionada ao jogador de futebol Bellini, capitão da Seleção Brasileira durante a Copa do Mundo da Fifa de 1958, na Suécia. Bellini tinha sintomas da doença de Alzheimer, mas, por conta do histórico de ele ser futebolista, os médicos suspeitaram da hipótese da demência do pugilista. Quando Bellini faleceu, em 2014, sua família concedeu autorização para realização da autópsia, que confirmou o diagnóstico da encefalopatia traumática crônica. Segundo Tumas, ela pode acontecer simultaneamente a doenças degenerativas como o Alzheimer. No caso do jogador, houve dificuldade no diagnóstico.

Outro fato ainda em pesquisa, conta Tumas, é a questão das subconcussões. O estudo é para saber se, por exemplo, cabecear a bola no futebol, mesmo que não haja nenhum sintoma imediato, possa levar a microtraumatismos que, se repetitivos, eventualmente possam evoluir para um quadro de encefalopatia traumática crônica. “Não temos uma certeza sobre isso, porém sabe-se que jogadores de futebol têm uma chance de desenvolver essa doença. Mas, se cabecear a bola sem sentir nada é um fator de risco, supõe-se que sim. Por conta disso, nos Estados Unidos, existe uma recomendação para que crianças só iniciem treinamentos de cabeceio no futebol acima de dez anos de idade para evitar as subconcussões desde a juventude”, conclui Tumas.


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