A Cracolândia, que significa terra do crack, fica no bairro da Santa Ifigênia, um dos mais antigos da cidade. É a região das avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero, Rua Mauá, Estação Júlio Prestes e da Praça Princesa Isabel. Em toda ela se desenvolveu, ao longo do tempo, intenso tráfico de drogas e também zonas de meretrício. A Cracolândia, como se apresenta hoje, teve início a partir do momento em que o poder público começa a intervir na região central da cidade, sob pretexto de renovação do bairro. Essa intervenção implicou a desapropriação de centenas de imóveis, declarados de utilidade pública, e o fechamento de bares e hotéis ligados ao tráfico de drogas e à prostituição, entre outras ações que acabaram por desfigurar o bairro.
No final da primeira década do ano 2000, a administração Serra/Kassab lançou um programa denominado Nova Luz, cujo objetivo era promover a reconfiguração e requalificação da área, valendo-se, para isso, de isenções fiscais, a fim de que investidores pudessem usar os terrenos demolidos na região para construir torres modernas e, ao mesmo tempo, atrair empresas de alta tecnologia. Na prática, no entanto, não foi o que ocorreu, como informou a professora Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em entrevista à Rádio USP.
Segundo ela, todo aquele tecido acabou demolido ou semidemolido, permanecendo no mais completo abandono e com uma manutenção cada vez mais precária por parte da própria prefeitura. A degradação resultante serviu como um chamariz para os dependentes químicos do crack e do álcool, que já existiam na região, embora ainda em pequena escala, e cujo número só fez aumentar à medida em que o abandono do bairro se acentuava. Em certo momento, e devido à concentração dos dependentes em determinados locais, o lugar passou a ser chamado de Cracolândia, estigma que carrega desde então.
Rechaçado pelos moradores da região, o projeto da Nova Luz nunca saiu do papel e acabou sendo interrompido. O que não teve fim, porém, foi o abandono da região, que continuou entregue aos dependentes químicos. Ao assumir, o prefeito Fernando Haddad não deu sequência ao projeto de seus antecessores. Ele preferiu introduzir um programa de atendimento e cuidado com os dependentes, denominado De Braços Abertos. A professora Raquel Rolnik observa, contudo, que a gestão Haddad não apresentou alternativas urbanísticas visando à recuperação do lugar.
Ao assumir a prefeitura do município, João Doria dá sinais de querer retomar o projeto da Nova Luz, “que tem como pressuposto derrubar o máximo possível de área, juntar o máximo possível de terreno para poder criar espaço para o empreendimento imobiliário”. Isso é feito, porém, sem nenhum respeito com as pessoas que estão ali – as quais demandam moradias e políticas de assistência social – ou com a memória e a história de um dos bairros mais antigos de São Paulo.”É um tipo de intervenção do estilo solução final, extermínio”, afirma a professora da FAU. Nesse processo, tudo é destruído, na melhor tradição da terra arrasada. Ela admite a necessidade de intervenção na Cracolândia, mas acredita ser possível intervir respeitando o tecido e, sobretudo, as necessidades de quem reside no local.