São Paulo tem quase 20 vezes mais imóveis vazios do que indivíduos em situação de rua, segundo IBGE

Para especialistas, a busca por políticas integradas para a compreensão desse cenário também é essencial com a criação de fluxos entre saúde, educação, cultura, lazer e habitação

 19/07/2023 - Publicado há 9 meses

Texto: Julia Galvao (estagiária*)

Arte: Simone Gomes

Cidade de São Paulo tem mais de 30 mil pessoas vivendo nas ruas – Foto: C.Alberto via Flickr – CC

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Segundo o Censo da População em Situação de Rua realizado pela Prefeitura de São Paulo, em 2021, a cidade conta com mais de 30 mil pessoas vivendo nas ruas do município. Cerca de 47,1% destas são representadas por pessoas pardas, 40,31% se encontram no bairro da Sé — localizado no centro da cidade — e 83,4% são do sexo masculino.

Em contrapartida, de acordo com o Censo Demográfico de 2022 divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), São Paulo conta com cerca de 590 mil imóveis particulares vazios, valor quase 20 vezes maior do que o número de indivíduos em situação de rua.

 Segundo Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, arquiteta e urbanista especializada em política habitacional, planejamento e gestão da terra urbana, o aumento do número de pessoas morando nas ruas paulistas se deu em função da combinação de dois processos simultâneos: de um lado a crise econômica que vem acompanhando o País desde 2014 e o aumento do desemprego, principalmente dos extratos mais baixos da população.

“Junto com isso, houve uma absoluta inação no campo da política habitacional. Então o que existia de programa para essa faixa de renda parou de existir no nível federal e nenhum governo municipal fez programa durante anos”, explica a especialista. É possível observar que esses programas passaram a ser retomados apenas recentemente, sendo necessário maior ação para o fortalecimento dessas políticas. 

Raquel Rolnik - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Raquel Rolnik – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Contradições 

Raquel analisa ainda que, junto desse cenário, São Paulo apresentou também um “boom imobiliário” que foi especialmente intenso durante a pandemia. “Por mais incrível que pareça, isso representou um aumento de preços de terrenos e, portanto, uma dificuldade muito maior de pagamento de aluguel por parte das famílias de menor renda”, esclarece. 

Além disso, nos últimos anos foi possível também observar uma mudança nos padrões dos indivíduos que se encontram nas ruas da cidade com um aumento do número de famílias inteiras nessas situações. Para Raquel, esse fator é a expressão de uma crise de moradia e emergência habitacional que revela a falta de condições de grupos familiares em encontrar qualquer forma de moradia que seja acessível. 

“O que é importante para a gente entender é que a indústria imobiliária e o espaço residencial são ativos financeiros de médio a longo prazo que sempre propiciam uma valorização.” Dessa forma, esse “boom” tem relação direta com a disponibilidade de capital e dialoga muito pouco com as necessidades habitacionais, sendo interessante notar que o aumento de unidades residenciais não implica aumento do acesso a esses locais. 

Padrões 

Renata Bichir, professora de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, comenta que as pessoas em situação de rua apresentam perfis que não são homogêneos, contando com a presença de homens cisgênero, mulheres cisgênero, pessoas transexuais, adultos, crianças, idosos e diversos outros grupos sociais.

“Se a gente for pensar em um perfil médio da população de rua, vamos estar falando de homens negros em torno do 40 anos de idade. A gente tem uma predominância de pessoas pretas e pardas e isso é mais um reflexo da desigualdade em que a gente vive”, esclarece a especialista. 

Renata Bichir – Foto: Arquivo pessoal

Com a pandemia de covid-19 foi perceptível o aumento de pessoas em situação de rua em função da presença de famílias inteiras nas regiões centrais. Contudo, a professora analisa que esse cenário faz parte de uma situação transitória que se diferencia de um perfil tradicional de permanência nas ruas. 

Raquel Rolnik comenta também que os programas atuais que buscam por soluções do problema ainda são muito rasos, mas é bom que eles estejam começando — apesar de seu lento crescimento. “Historicamente, a política para as pessoas em situação de rua não é a política habitacional, mas é a política do abrigo. Esse é o lugar em que você vai passar a noite e não morrer de frio, mas você continua o resto do dia sem casa.” Dessa forma, as novas políticas habitacionais defendem que, hoje, para melhorar de fato as condições dessas pessoas, deve-se conceder acesso à moradia, sendo importante lembrar que a moradia digna não representa, necessariamente, casa própria. 

Políticas integradas 

Existem diferentes fatores que podem explicar a situação de rua, entre eles a perda de trabalho, os conflitos familiares e o uso abusivo de álcool e drogas. Considerando esse cenário, pensar em soluções para o problema significa refletir acerca de políticas múltiplas ou integradas. “A população estar em situação de rua gera uma série de fragilidades e vulnerabilidades para além da dimensão da moradia”, destaca Renata Bichir. 

Entre as maiores necessidades da população em situação de rua se encontra a de emprego, ou seja, a busca por renda e, em segundo lugar, a necessidade de moradia. Além disso, existe uma série de demandas que apresentam relação com o atendimento público de saúde e com a melhoria do sistema de formação profissional. 

Com relação ao sistema de habitação nacional, a demanda por aluguel social é um dos principais tópicos para a melhora desse sistema. Segundo Renata, aproveitar imóveis desocupados poderia auxiliar nesse processo, mas para isso é necessária também uma integração entre autonomia financeira e políticas de geração de renda. 

Além disso, do ponto de vista das políticas existentes, é relevante pensarmos nas redes de equipamento da assistência social do Sistema Único de Saúde (SUS) que contam com Centros de Acolhida. “Esses são lugares de permanência transitória, as pessoas podem ficar até seis meses nesses territórios e isso pode ser eventualmente renovado”, comenta a  professora. As repúblicas também são espaços que podem oferecer uma moradia para esses indivíduos, contando com uma ideia de cogestão por parte dos moradores, sendo necessário que o indivíduo apresente alguma fonte de renda para colaborar com a manutenção do local.

“Não tem uma medida que resolva tudo, a gente precisa olhar para essa situação na sua complexidade. Assim, precisamos melhorar a divulgação e o conhecimento acerca dos equipamentos existentes”, discorre a especialista. A busca por políticas integradas para a compreensão desse cenário também é essencial com a criação de fluxos entre saúde, educação, cultura, lazer e habitação 

Por fim, é necessário que as políticas públicas compreendam a diversidade de perfis e de necessidades presentes para diminuir o estigma associado a uma visão impressionista da pessoa que se encontra em situação de rua. Dessa forma, o serviço de abordagem especializado é importante para aumentar o contato humano e qualificado dessas pessoas para que elas possam, se assim desejarem, ser encaminhadas para serviços especializados. 

Júlia Galvão (estagiária*) sob orientação de Marcia Avanza


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