Por que criar uma Rede Universitária de Serviços Científicos e Ambientais

Por Heloisa Candia Hollnagel, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Luiz Jurandir Simões de Araújo, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 20/12/2022 - Publicado há 1 ano
Heloisa Candia Hollnagel – Foto: Arquivo pessoal
Luiz Jurandir Simões de Araujo – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Enquanto nosso protagonismo é colocado à prova, frente ao desastre ambiental do último governo, o Brasil agora tem potencial de fazer a diferença embora apresente grandes gargalos, desafios e fraquezas “na planta industrial” de pesquisa científica e tecnológica. Há poucas oportunidades para inserir as jovens doutoras e doutores, há falta de recursos para manter projetos e equipes de pesquisa (até uma simples manutenção de geladeira -80 ºC é um dilema). Além da escassez e descontinuidade de verbas públicas e de órgãos de fomento privados, a ausência de projetos em parcerias com empresas nas universidades, de modo geral, não consegue manter o ecossistema P&D de forma adequada, há muitos e muitos “falta isso e falta aquilo, vamos levando do jeito que dá, fazer o que, né!”.

P&D é investimento, estrutura, labore, gestão, fluxos, processos. Grandes debates epistêmicos, doutos e lattesianos não fazem verão. As universidades precisam “olhar fora da caixa” e articular-se para germinar novos espaços, novas oportunidades, novas sinergias ganha-ganha. O mais espantoso é que há esses espaços, vários óbvios. Mesmo com algumas iniciativas já em andamento (vide o modelo USP), a nossa atávica dificuldade de regulamentar para aumentar a segurança jurídica nas parcerias (e na definição de propriedade intelectual), inovar na governança, nos modelos de gestão e nas patotas encrustadas nos topos hierárquicos travam, atritam, inviabilizam. Latinidade interpessoal ancestral.

Um desses novos espaços está na certificação ambiental de projetos relacionados às mudanças climáticas e validação de projetos que gerem créditos de carbono. É fato que ações contra as mudanças climáticas são uma tarefa interdisciplinar, de todos, com peculiaridades geográficas que deixam o esforço de criar modelos confiáveis (e aceito pelos stakeholders) ainda mais complexo. Para manter a temperatura global em níveis seguros, é preciso um olhar e tecnicalidade local para que os vários setores da sociedade possam somar seus esforços à transição para uma economia zero-carbono (sem ações de puro marketing, greenwashing e zero efetividade).

O que é uma universidade brasileira? Uma instituição interdisciplinar por origem e até no nome, cada qual inserida numa realidade geográfica/meteorológica/social diferente (num país de 8,5 milhões de km2), cada qual com milhares de especialistas precisando de mais oportunidades (bolsas, por exemplo) para não só poderem seguir suas vocações e criar/inovar/resolver problemas (muitos, aliás), como para desempenhar o papel social relevante esperado pela sociedade.

Portanto, cada uma já está pronta para estudar, acompanhar, precificar e estimar os impactos positivos e negativos de cada ação/projeto para captura de carbono, para mitigação do efeito estufa, para redução do consumo de água, para inúmeros desafios do século 21 e da Agenda 2030. No momento, o que se observa são empresas de consultorias ou órgãos de uma categoria profissional específica capitaneando as ferramentas de separar “o joio do trigo” de empresas e países que necessitam de validação de suas ações relativas às emissões e redução da pegada de carbono na busca de uma economia net zero. Além das vantagens competitivas do ambiente altamente qualificado presente nas universidades, não há conflitos de interesses com as empresas que buscam o reconhecimento de seus esforços. Elas precisam de certificadores isentos, qualificados com equipes interdisciplinares.

Neste sentido, a proposta de criação do “www.RUSCA” (Rede Universitária de Serviços Científicos e Ambientais – ainda em fase de concepção) gerido, por exemplo, por uma fundação de apoio, que fizesse a interveniência (econômica e formal) entre os pesquisadores e as empresas, parece ser um caminho natural, sinérgico e, desculpem-nos a falta de modéstia, criativo, impactante em escala nacional.

Diariamente os meios de comunicação divulgam iniciativas relacionadas ao compromisso de empresas e governos em combater as mudanças climáticas, compromisso assumido pelo Brasil e outros países signatários do Acordo de Paris. Mas, cadê o elo final dessa corrente?

As discussões sobre como deve ser a precificação do carbono e a sua tributação ainda não levaram a um consenso, e o mercado de transação de créditos de carbono ainda é voluntário. Avanços na estruturação de sistemas regulados de precificação de carbono podem ser observados em diversos contextos: internacional, regional, nacional e subnacionalmente, fundamentados nas iniciativas reguladas no quadro jurídico trazido pela UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change ou Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima).

O MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) é um dos mecanismos de flexibilização criados pelo Protocolo de Quioto para auxiliar o processo de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) ou de captura de carbono (ou sequestro de carbono). Estes projetos devem utilizar metodologias aprovadas e ser validados e verificados por Entidades Operacionais Designadas (EODs), além de ser habilitados e registrados pelo Conselho Executivo do MDL. Também o governo do país anfitrião, através da Autoridade Nacional Designada (AND), assim como o governo do país que comprará os CERs (Certificados de Emissões Reduzidas), devem avalizar os projetos.

Desde novembro de 2021, o recebimento de solicitação de cartas de aprovação para novos projetos de MDL foi suspenso pela Autoridade Nacional Designada do Brasil, por ausência da regulamentação do mecanismo de desenvolvimento sustentável instituído pelo artigo 6º do Acordo de Paris. Recentemente, o Decreto nº 11.705/2022 instituiu o Sistema Nacional de Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa – Sinare, uma central única para o registro de emissões, remoções, reduções e compensações de GEE e dos atos de comércio, transferência, transações e aposentadoria de créditos de carbono no Brasil. Neste contexto, as universidades da RUSCA poderiam dar suporte ao processo de validação, antes da submissão ao Sinare, aumentando a confiabilidade e a eficácia desta central (sem a necessidade de ter quadro próprio de especialistas).

Além disso, este decreto prevê a estruturação de um mercado regulado de créditos de carbono até 2025. Dentre os possíveis desafios está em fazer um projeto de crédito de carbono com a linha de base setorial, tal como prevê o decreto, está a capacidade técnica, inclusive para a validação destes créditos.

O Brasil concentra 15% do potencial global de captura de carbono nas atividades relacionadas ao uso da terra e pode responder por 50% da oferta de crédito no mercado internacional até 2030, quando se projeta um mercado voluntário de US$ 50 bilhões.

Relembrando que os CERs ou Créditos de carbono ou Redução Certificada de Emissões (RCE) são certificados emitidos quando ocorre a redução de emissão de gases de efeito estufa (GEE). Por convenção, uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivalente corresponde a um crédito de carbono. Este crédito pode ser negociado no mercado entre interessados em atender a metas de redução predefinidas em normas ou compromissos assumidos.

No caso de florestas, existem duas possibilidades de gerar créditos de carbono: o AR e o REDD+. O AR (afforestation/ reforestation) é o reflorestamento por plantio, recuperando áreas degradadas ou criando vegetação em locais possíveis. No segundo caso, a conservação florestal, REDD+ é um mecanismo que propõe um conjunto de ações de combate ao desmatamento por meio de atividades sociais, de clima e biodiversidade que resultam na Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal somado (+) à conservação dos estoques de carbono florestal, manejo sustentável de florestas e aumento dos estoques de carbono florestal. Outra possibilidade no Brasil em função da sua geografia e extensão costeira é o Blue Carbon, ou seja, o sequestro de carbono por ambientes marinhos e vegetação de restinga/manguezal.

Em alguns países diversas tecnologias têm sido empregadas para sequestrar o dióxido de carbono, como, por exemplo, a Captura Direta de Carbono (DAC) do ar, que é uma tecnologia que remove o dióxido de carbono (CO₂) da atmosfera, usando ventiladores de alta potência (o ar é puxado para uma instalação de processamento onde o CO₂ é separado por meio de uma série de reações químicas). Em seguida, o CO₂ é armazenado permanentemente em reservatórios subterrâneos por meio de sequestro geológico seguro ou é usado para fabricar novos produtos, como materiais de construção e combustíveis de baixo carbono. Outra alternativa é a Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono, ou BECCS, que é o processo de queima de culturas ou resíduos agrícolas para eletricidade ou usá-los para produzir biocombustíveis e sequestrar as emissões relacionadas no subsolo. Conta como CDR (carbon dioxide removal) porque as culturas consomem dióxido de carbono à medida que crescem e o sequestro garante que nunca seja reliberado.

Em resumo, a remoção do dióxido de carbono pode ocorrer por meio de incorporação à biomassa ou uso de tecnologia (bem como a combinação dos dois). Cada abordagem de remoção de carbono oferece promessas e desafios, mas capturar e armazenar CO2 (e a respectiva validação deste processo com governança confiável e qualificada) devem fazer parte da estratégia de reduzir as alterações do clima no Brasil e em todo o mundo para evitar níveis perigosos de aquecimento global.

É hora de começar a (re)estruturar entidades nacionais capazes de realizar a validação de todo o portfólio de abordagens de remoção de carbono – em pesquisa, desenvolvimento, demonstração, implantação em estágio inicial e condições de habilitação – para que se tornem opções viáveis na escala necessária nas próximas décadas. Neste sentido, as universidades são um celeiro de mão de obra qualificada e inovação. As universidades, numa rede articulada por um hub com foco econômico e operacional, são uma estratégia producente, aceleradora e viabilizadora da articulação de muitos esforços, antes dispersos e a-sinérgicos.

Dentro das diretrizes da PNMC – Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009 (art. 5) consta em seu inciso V: o estímulo e o apoio à participação dos governos federal, estadual, distrital e municipal, assim como do setor produtivo, do meio acadêmico (destaque nosso) e da sociedade civil organizada, no desenvolvimento e na execução de políticas, planos, programas e ações relacionados à mudança do clima.

A experiência de combate à covid-19 mostrou a capacidade das instituições brasileiras de ensino e pesquisa para unir esforços e criar articulações para resultados efetivos. Nesse sentido, uma rede multi-institucional de universidades públicas (e privadas) parece ser a estratégia mais econômica e de menor risco para aumentar o interesse de certificação da capacidade de remoção de carbono de organizações e países e envolve o desenvolvimento e a implantação de uma variedade de abordagens em conjunto.

Além disso, dados os potenciais impactos ecológicos, sociais e de governança desta abordagem proposta são incontestáveis.

Articulando os ingredientes da modernidade: blockchain; a capilaridade natural do U2B, U2G e U2C (Universidade – Business/Governos/Consumidores); a expertise e capacidade técnica para analisar e julgar a pertinência de projetos nas diferentes áreas do conhecimento (multiprofissional); as peculiaridades dos biomas de um país que ainda é um gigante adormecido neste tema.

8,5 milhões de km2, 215 milhões de pessoas, enorme variabilidade geográfica, destruições e decadência OU Inovação e Ação.

Façamos a escolha.


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