O falso salto da molécula para o coletivo: o exemplo do câncer

Por Paulo A. Lotufo, professor da Faculdade de Medicina e superintendente de Saúde da USP

 22/02/2024 - Publicado há 2 meses
Paulo A. Lotufo – Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Semana passada, o jornal Folha de S. Paulo divulgou entrevista realizada anteriormente pela BBC sobre um livro de pesquisador espanhol abordando impacto do câncer na sociedade. O entrevistado é biólogo molecular e avança em temas da clínica médica e da epidemiologia com frases de efeito como “não tenho medo do câncer nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível”. Um equívoco básico, somos antes de tudo seres sociais. Depois, ele garante ter uma predestinação genômica ao declarar: “Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica, resistindo a milhares e milhares de mudanças diárias no meu genoma”. O título da matéria é sensacionalista: “Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo”.

Ele tenta explicar sua tese com um conceito popular difundido por Richard Dawkins: as células que provocam o câncer assim o fazem porque se tornam “egoístas”. O “gene egoísta” é tema polêmico a ser abordado em outro momento. O entrevistado desconhece epidemiologia, mas avança na filosofia ao afirmar: “Quando você observa os milhões de reações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito”.

Todo o arrazoado apresentado é um exemplo do reducionismo biológico de qualidade ruim que precisa ser pontuado em cinco tópicos: a ausência de menção ao cigarro, o desconhecimento da evolução temporal das doenças, o efeito competitivo de causas de morte, a prevenção do câncer e perspectivas do câncer no cenário epidemiológico.

O primeiro ponto é preocupante. Os editores deveriam questionar por que o entrevistado repetidamente afirma que o “câncer é genético”, mas nada diz sobre o tabagismo. Há mais de 70 anos, na coorte dos médicos ingleses se mostrou que o tabagismo é a causa principal do câncer. No caso da neoplasia de pulmão, 90% dos casos são devidos ao consumo de cigarro. Assim, ainda em 2021, a despeito da queda da prevalência do tabagismo na população do País, o câncer de pulmão é a neoplasia que mais mata brasileiros de ambos os sexos.

O segundo ponto é que o entrevistado desconhece que todas as doenças têm evoluções temporais com aumento de casos e mortes, estabilização desses números e, depois, quedas da incidência como da mortalidade. Exemplificando: até a metade do século passado, as doenças infecciosas como pneumonia, tuberculose, enterites eram as principais causas de morte no Brasil e no mundo. Com a melhoria de saneamento e a introdução de antibióticos, essas doenças passaram a ter letalidade cada vez menor. Por atingirem os mais jovens, as novas gerações beneficiadas com essas melhorias passaram a morrer mais de doenças cardiovasculares.

Na década de 1950 houve aumento importante na incidência e mortalidade das doenças cardiovasculares, que se tornaram a principal causa de morte. Novamente estudos de coortes, no caso o Framingham Heart Study, mostrou que o trio colesterol alto-hipertensão-tabagismo era determinante na mortalidade cardiovascular. Em decorrência desse conhecimento, várias ações de saúde pública e novos medicamentos para redução de pressão arterial e do colesterol permitiram uma queda da mortalidade cardiovascular, mesmo assim persiste como a principal causa de morte no Brasil e no mundo.

O terceiro ponto é o sucesso da cardiologia preventiva. A letalidade cardiovascular se reduziu e, com isso, efeitos prolongados do tabagismo, como cânceres e as doenças pulmonares, aumentaram em proporção maior que anteriormente, pela queda da mortalidade cardíaca, o que denominamos “efeito competitivo da mortalidade”. No entanto, o risco de morte por todas as causas de câncer se reduz ano a ano desde 2005 para ambos os sexos. A mortalidade por câncer de mama está estável e por próstata em declínio.

O quarto ponto é que o entrevistado de relance cita causas não genéticas de câncer, como HPV (cânceres de colo uterino, pênis e cabeça e pescoço) e Helicobacter pylori (câncer de estômago). Justamente, a detecção precoce de lesões uterinas causadas pelo HPV (Papanicolau) e a vacina para o vírus permitiram redução importante na incidência e letalidade do câncer de colo uterino. A melhora no saneamento e no acondicionamento de alimentos permitiu redução da prevalência do Helicobacter (e de outros carcinógenos em alimentos preparados), que produziu uma queda na incidência e mortalidade do câncer de estômago. Como já dito, a principal prevenção de todos os cânceres foram as políticas públicas de redução do tabagismo.

O quinto tópico é que o câncer não é inevitável. As causas de morte que estão em ascensão a partir dos 70 anos de idade são a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson, para ambos os sexos, e doença renal para os homens brasileiros. Para compreender as causas do aumento da mortalidade por essas novas causas, novamente as coortes irão responder, incluindo o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, o Elsa-Brasil, que acompanha 15.105 adultos desde 2008.

A importância em mostrar os equívocos sérios publicados com grande destaque na imprensa brasileira é advertir que as pesquisas em bancadas são meritórias e válidas, mas que não podem ser extrapoladas para o indivíduo, para isso existe o conhecimento milenar da Clínica Médica, como principalmente para populações, para isso existe o conhecimento de décadas da Epidemiologia. Esta é uma advertência tanto para pesquisadores como para aqueles dedicados à divulgação científica: não transponham resultados de bancada para populações.

Nota final: o autor e os pesquisadores do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica são organizadores do Elsa-Brasil e participam do consórcio Global Burden of Diseases (GBD), cujos resultados até 2021 foram aceitos por The Lancet, mas ainda se encontram sob embargo.

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