“Marca o @!”

Por Henrique Braga, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP

 24/08/2022 - Publicado há 2 anos
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal

 

Como a abreviação de uma preposição latina se tornou um possível reflexo das chamadas relações líquidas

A expressão que dá título a este artigo é bastante conhecida. Caso ela lhe soe estranha, certamente é porque você (ainda) não se aproximou daqueles perfis em redes sociais que tentam nos influenciar a conhecer um “restaurante incrível”, uma “baladinha hype” ou uma “experiência ‘instagramável’ (sic)”. Ciosos da comunhão entre os semelhantes, tais influenciadores costumam recomendar que seus leitores convidem alguma pessoa querida para conhecer o lugar indicado. É nesse contexto que surgiu a curiosa expressão “marca o arroba!”, que significa algo como “mencione nos comentários a pessoa que você quer convidar, para que ela veja esta postagem”.

Nesse contexto bastante novo, o sentido mais exato de “arroba” ainda está em vias de se estabelecer. No entanto, o uso do artigo definido (“o arroba”) sugere que não se trata de qualquer contato da rede, mas de alguém especial: provavelmente uma pessoa com quem já existe um relacionamento afetivo – ou um desejo de que haja –, o que justifica o convite para o passeio.

Tendo em mente ainda que os signos linguísticos não são “neutros”, uma vez que sempre encerram uma perspectiva, quais seriam as possíveis implicações discursivas de nomear um “affair” como “arroba”?

Uma breve história da @

No princípio, o sinal que chamamos “arroba” não tinha esse nome. Sua origem remonta a monges copistas do período medieval, que usavam @ como uma simplificação da preposição “ad” (“para”) – tal como & era abreviação para a conjunção “et” (“e”). Em ambos os casos, os religiosos criaram caracteres para representar o entrelaçamento de duas letras (“a” e “d” no primeiro caso; “e” e “t” no segundo). Dessa forma, nesses documentos, a forma @ não deve ser lida da maneira que, provavelmente, você acabou de ler (“arroba”), mas como “ad”.

Posteriormente, o mesmo sinal passou a ser usado para representar uma unidade de medida, levada pelos árabes à Península Ibérica: ar-rūb, termo que, conforme o Dicionário Houaiss, significaria literalmente “a quarta parte” de um quintal (uma antiga medida de massa). Apesar de seus valores terem sido discrepantes ao longo dos séculos, hoje uma arroba (medida ainda utilizada para calcular o peso de grandes animais para abate) equivale a 15 quilos.  Foi nesse processo que o sinal @ ganhou, por metonímia, o nome da unidade por ele representada: “arroba”.

Analisando essa alteração de sentido (da preposição “ad” para a unidade “arroba”), nota-se que o processo de mudança do sinal @ não seguiu uma linha reta, menos ainda previsível (contrariando o postulado de que as mudanças linguísticas seguiriam um princípio conhecido como unidirecionalidade). Essa maleabilidade do termo continua ativa neste século 21, quando, nas redes sociais, “arroba” passa a significar algo como “namorado/a”, “contatinho”, “affair“. Nesse caso, a associação decorre do formato dos endereços nas redes sociais – como @modolo.marcelo ou @henriqbraga, por exemplo –, que passam a ser encabeçados pelo sinal. Esse uso da @, cabe acrescentar, é um segundo passo da regra de programação criada em 1972 por Ray Tomlinson: antes de seu uso em redes como Instagram ou Twitter, o sinal servia para separar o nome do usuário e a base em que seu e-mail estaria alocado – tal qual modolo@usp.br.

O @ em tempos de amor líquido

Em entrevista concedida ao canal Fronteiras do Pensamento, o filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925–2017) analisou relações interpessoais nas redes à luz de seu celebrado conceito de “modernidade líquida”. De forma resumida, Bauman chama atenção para a superficialidade dessas “conexões”, que podem ser feitas e desfeitas ao toque de um botão (“seguir”/“deixar de seguir”).

Nesse novo contexto, não é raro que relações “amorosas” surjam com o mesmo tipo de fragilidade e incerteza, a ponto de não poderem ser nomeadas com os termos “antigos”. Como nomear uma pessoa que você conheceu em um aplicativo de relacionamentos, adicionou na sua rede social e, após essa aproximação virtual, decidiu convidar para conhecer o lugar indicado por um influenciador digital? Mesmo o termo “ficante” pode sugerir uma constância descabida nesse novo contexto social. Eis que surge novamente o @, especialista em abreviar significados, assumindo novo papel semântico.

Embora ainda nos faltem mais dados para aprofundar a hipótese, parece plausível considerar que esse novo uso do termo “arroba” é uma escolha linguística com fortes ecos dos nossos tempos. Seria a sutileza semântica da @ um recurso para não se comprometer na tentativa de definir o status de uma relação? Ou quem sabe uma forma de tentar resumir um ser de carne e osso – com as inerentes peculiaridades, desejos e inconstâncias da espécie humana – a um mero conjunto de bytes (ou, de forma menos dramática, reduzi-lo a uma @)?


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