Leituras escolares com protagonistas negros convidam crianças a refletir sobre o racismo

Debates a partir de histórias sobre personagens negros exploram opiniões, vivências e dúvidas de estudantes do ensino fundamental sobre questões étnico-raciais

 Publicado: 17/01/2025 às 16:11

Texto: Maria Trombini*

Uma menina negra está lendo o livro "Meu crespo é de rainha", que está apoiado em suas mãos

Fotomontagem sobre imagens do livro Meu crespo é de rainha/Boitatá e Freepik

Histórias sobre personagens negros são contadas em apenas 12% dos livros infantis. O dado do Centro Cooperativo de Livros Infantis, biblioteca e centro de pesquisa norte-americano, expõe a lacuna de representatividade na literatura infantojuvenil. Frente a esse panorama, a professora e pesquisadora Simone de Goes Costa decidiu explorar a percepção dos alunos sobre questões étnico-raciais a partir do contato com livros que trouxessem releituras e/ou novas histórias com protagonistas negros. 

O resultado é apresentado na dissertação de mestrado Mas princesa, com esse cabelo?: Olhares infantis sobre questões étnico-raciais no contexto da sala de leitura de uma escola pública em São Paulo, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e da Participação Política (ProMuSPP) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. 

“Minha ideia central era entender como as crianças pensam, enxergam e vivenciam as relações étnico-raciais. O ambiente da sala de aula foi importante porque eu queria ouvir todas as crianças, negras e brancas, tudo que elas trazem”, afirma a professora. 

A temática da dissertação surgiu a partir das vivências de Simone como docente na rede pública de São Paulo. Ela relata um episódio marcante, que impulsionou seu interesse: quando uma aluna negra questionou os traços da protagonista de uma das histórias lidas pela professora.

“Uma menina ficou chocada porque eu escolhi uma leitura que tinha uma princesa negra. Ela questionava o tempo inteiro: ‘Mas cadê a princesa? Essa é princesa?’. Eu respondi que sim, e ela disse ‘nossa, mas com esse cabelo? Com essa roupa? Não, ela não é princesa, né?’, porque ela sentia uma indignação. De tanto não ver [princesas negras] em outros livros, ela não conseguia entender que aquilo era verdadeiro. Isso despertou em mim a vontade de entender o que as crianças pensavam sobre esse universo”, conta. 

Releituras

Uma vez por semana, alunos das escolas municipais da capital paulista visitam salas de leitura para ouvir e debater histórias. A atividade é parte do Programa Salas e Espaços de Leitura da Prefeitura de São Paulo, que visa estimular a prática literária entre as crianças. 

Foi durante esses encontros semanais que Simone desenvolveu a parte prática de sua dissertação. Durante dez semanas, ela leu diferentes livros para duas turmas, uma do 4º e uma do 5º ano do ensino fundamental. Foram trabalhados títulos como Amoras, de Emicida, Meu Crespo é de Rainha, de bell hooks, Chico Juba, de Gustavo Gaivota, e A Princesa e a Ervilha, de Rachel Isadora. 

Capa do livro "Amoras", de Emicida, ilustrado com o desenho do rosto de uma criança negra, com cabelos crespos volumosos.
Livro "Meu Crespo é de Rainha", de bell hooks. A capa é ilustrada com o desenho de uma menina negra com um penteado afro.
Capa do livro "A Princesa e a Ervilha", de Rachel Isadora. A princesa ilustrada na capa é uma moça negra, com roupa africana e penteado afro. Ela está sentada sobre uma grande pilha de colchões e sobre sua cabeça há folhas de palmeira.
Capa do livro "Chico Juba", de Gustavo Gaivota, que traz a ilustração do protagonista da história: um sorridente menino negro com cabelo estilo black power. Ele está com os braços abertos, como quem se prepara para dar um abraço em alguém.

Alguns dos livros abordados nas atividades da sala de leitura

Ao final da leitura de cada livro, os estudantes se organizavam em uma roda de conversa. A professora explica que o intuito era deixar que as crianças trouxessem suas próprias visões e dúvidas para o debate entre elas. Apesar de acrescentar questionamentos e intervir quando necessário, dar abertura às crianças era fundamental para que elas pudessem expor suas opiniões.

“Os alunos debatiam e davam exemplos de situações. Eu fui só uma condutora, para dar um start na aula, mas o debate aconteceria sem mim tranquilamente. Eu queria entender o que elas estavam pensando, ouvindo elas mesmas, sem a minha interpretação. Acho que se fala muito de crianças, mas pelo olhar do adulto. Mas, como Paulo Freire falava, a educação não é bancária, como se eles não soubessem nada e você vai e transfere o conhecimento. As crianças têm muito entendimento de tudo que está acontecendo”, argumenta a pesquisadora. 

Simone diz que a espontaneidade dos alunos revelou diferentes posturas: “Alunos negros ficaram muito felizes em ver os livros, enquanto algumas crianças brancas me perguntavam se eu só ia ler histórias de pessoas negras”. 

Ela comenta que, ao longo das aulas, percebia que algumas crianças pareciam estar tendo um primeiro contato com as temáticas e reflexões raciais. O conhecimento adquirido as fazia repensar as posturas, bem como perceber a importância da atividade dentro do ambiente escolar.

“Um aluno disse: ‘Eu gostei muito, porque nós temos que falar sobre isso. E quem sabe, assim, um dia o racismo desapareça?’. Eles viram as mudanças na própria turma e entenderam a importância de trazer a discussão para a escola. Então, acho que deu um pouquinho de esperança para mim e para eles.”

Letramento racial

A pesquisadora aponta que era possível notar certo nível de letramento racial entre alguns estudantes. “É surpreendente ver como eles sabem nomear, sabem dizer o que é racismo. Tanto na escola como no ambiente familiar, o debate já está fazendo efeito”, diz ela. “Eu até expus isso para eles: quando eu era criança, sabia que algo acontecia, que existia, mas não sabia definir. Então, eu trazia para o campo individual. Achava que as pessoas não gostavam de mim porque eu era chata e que eu deveria ser mais boazinha. Tentava agradar os outros porque sentia medo da rejeição. Mas, hoje, eles sabem nomear o racismo. De certa forma, senti como se curasse um pouco do meu passado”, relata Simone, uma mulher negra. 

Alguns jovens também demonstraram compreender assuntos de gênero, sexualidade e inclusão. Em uma das leituras, cuja protagonista era uma princesa negra, o maior impacto nas crianças foi provocado pelas características atribuídas a uma personagem feminina. 

“As meninas falaram que não querem mais ser princesas. Alguns meninos diziam que para ser princesa tem que ser educada e falar baixo, e aí foi um quebra-pau. Surgiu um debate sobre o que é ser uma princesa, sobre a perfeição, que elas não aguentam mais. A questão racial ficou de lado, mas foi interessante porque surgiu essa interseccionalidade que eu não esperava”, conta a pesquisadora.

Ilustração realista de uma menina negra fantasiada de princesa, vestindo uma armadura metálica e rodeada de flores. Imagem gerada por inteligência artificial.

Representações de princesas geraram discussão entre as crianças na sala de leitura – Foto: Freepik/Gerada por IA

As questões com recorte de gênero também apareceram na temática das pressões estéticas. Simone destaca que um dos primeiros xingamentos direcionados às crianças negras é referente ao cabelo e, por isso, ela incluiu livros que abordam questões de cuidado e autoestima. 

Segundo a pesquisadora, há uma incongruência grande entre meninos e meninas. Para as meninas, a pressão estética aparece com um peso maior, mas são elas também que têm mais consciência e estão mais empoderadas. 

“Vejo mais crianças assumindo o cabelo natural e usando as tranças, mas ainda tem um sofrimento grande. Um dia, por conta da correria, eu fui trabalhar e fiz um coque no cabelo. No fim da aula, uma aluna chegou para mim e disse: ‘Posso te pedir uma coisa? Na próxima aula, você vem de cabelo solto? Porque eu gosto de ver”. Então, estar ali enquanto pessoa negra é muito importante para incentivar, porque comunica algo, e faz toda a diferença”, relata a professora.

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