Instituto de Química da USP: O jubileu de prata e os anos próximos

Por Tibor Rabóczkay, professor aposentado do Instituto de Química da USP

 24/09/2020 - Publicado há 4 anos
Tibor Rabóczkay – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

O Instituto de Química da USP, constituído em 1970, reuniu o Departamento de Química da FFCL (abreviadamente chamado de “Glete” em referência ao seu endereço anterior) e as disciplinas ditas fundamentais (química, química orgânica, fisico-química, química analítica etc.) de várias unidades da USP. Seus 123 docentes eram das seguintes origens: 34% da FFCL (“Glete”), aproximadamente 29% da Faculdade de Farmácia e Bioquímica, cerca de 15% da Escola Politécnica, 13% da Faculdade de Medicina, 5% da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia e 3% da Faculdade de Odontologia.

Pelo fato de a “Glete” ter sido a única instituição assimilada por inteiro na recém-criada unidade, pareceu a alguns que o Instituto de Química seria uma “Glete” ampliada. Nada mais longe da verdade. A formação do IQ representou uma ruptura com o ensino em grande parte descritivo e um salto para a química moderna. Acontecia uma intensa internacionalização com cientistas estrangeiros trabalhando nos laboratórios em formação. Ao mesmo tempo, formava-se a fila de professores brasileiros intencionados em ampliar seus conhecimentos no exterior.

Se nas “altas esferas” a integração parecia ocorrer concordantemente, entre os docentes de início de carreira ela conduziu a um choque de culturas, cujos efeitos persistiram durante décadas. Em lugar do espírito de equipe prevaleceu o “bairrismo”, a desconfiança mútua e certa rivalidade. Alunos, frequentemente, eram induzidos a evitar orientadores que não fossem da estirpe “gletiana”. Por outro lado, houve quem propusesse que as orientações deveriam ser restritas aos graduados pelo IQ ou a “Glete”, para manter o “alto nível”.

A harmonização das culturas não era fácil em decorrência dos valores discordantes vigentes nas instituições de origem. Como exemplo, no Departamento de Química os docentes pesquisadores eram submetidos a um regime monástico. Alguns chegaram a trabalhar em tempo integral, percebendo salário de tempo parcial. Posteriormente, esperavam com paciência o sinal verde de seus superiores para galgar o próximo degrau da carreira. A dedicação exclusiva de pleno direito era uma conquista a demorar tempo considerável. Em contraste, para os que vieram da Escola Politécnica o primordial era o ensino e galgar as etapas da carreira era a maneira de demonstrar competência em vez de uma sequência de concessões para os obedientes. Além do mais, a carência de engenheiros recém-formados que se interessassem em ficar na Universidade fazia deles profissionais altamente demandados. Semelhante era o caso dos formandos em ciências farmacêuticas e nas outras áreas. Tais diferenças culturais inevitavelmente conduziram a visões e atitudes diferentes diante da missão da Universidade, do ensino, da pesquisa e da relação com o setor produtivo de bens tangíveis (faço esta distinção de “tangível”, pois não concordo com a ideia de que quem “só” ensine seja improdutivo, em contraste com a “famosa” lista de improdutivos da USP).

Graças a projetos de financiamento nacionais e internacionais, a instituição conseguiu equipar seu amplo espaço e rapidamente se colocou na vanguarda no tipo de pesquisa abraçada, isto é, a ciência pelo conhecimento descompromissado, mantendo-se dos interesses do setor produtivo de bens a uma distância segura. Postura cientificista não muito diferente da vigente em grande parte das instituições superiores do exterior. Nelas todas um dos principais critérios de avaliação dos docentes é baseado no número de artigos publicados, número de citações, fatores de impacto das revistas.

O IQ-USP é formado por dois departamentos. O de Química Fundamental e o de Bioquímica. Essa divisão, que omite a presença de um terceiro departamento, que seria vinculado a questões práticas, ao avanço tecnológico e suporte ao setor produtivo de bens, reflete a visão “elitista” de seus fundadores. As propostas tímidas de um terceiro departamento foram sempre energicamente rechaçadas. Isso não só colaborou para a perda de terreno diante de institutos semelhantes, até no âmbito da USP, além de outras universidades mais jovens e mais dinâmicas, mas dificulta uma ampliação de objetivos para atender às novas exigências da sociedade: instituições cujas preocupações incluíssem também os problemas do cotidiano. Um exemplo surpreendente dessa mentalidade de torre de marfim foi a recusa de o IQ firmar um convênio com a Receita Federal, para gerenciar o laboratório de controle analítico no Porto de Santos, perdendo um enorme valor financeiro, consequentemente, repassado para outra universidade paulista. Há outras sequelas da alienação: o IQ tem pouca ou nenhuma interação com a Abiquim – Associação Brasileira de Indústrias Químicas e sua participação num dos eventos mais importantes da área, o International Workshop on Advances in Cleaner Production, tem sido praticamente nula.

A direção do IQ e seus cientistas não se deram conta dos ventos de mudança nem quando a Fapesp passou a financiar a constituição de empresas de cunho tecnológico há décadas. Empresas que gerariam empregos, impostos e, portanto, até verbas para a pesquisa científica “pura”.

Atualmente a pandemia do coronavírus despertou a atenção do público e de políticos para as universidades financiadas pelo Estado, isto é, pelos impostos. Até um questionamento, ainda que canhestro, da parte de parlamentares já ocorreu com inquirição sobre a produção de conhecimento da USP. É de se esperar que essa vigilância e questionamento se tornem mais rigorosos – e mais inteligentes – em futuro breve, enquanto os recursos financeiros tenderão a diminuir.

Urge, então, o IQ constituir, como já propus em 1991, uma comissão estratégica, um think tank, que planeje os caminhos futuros, e abra o leque de atividades para incluir as de interesse tecnológico. Somente a satisfação das exigências da sociedade dará condições, nos anos vindouros, para se manter a pesquisa “básica”, a investigação de livre temática com seus papers e contagem de citações, embora não mais num papel dominante.

As readaptações necessárias se estendem à formação dos alunos. “A USP tem como missão institucional formar recursos humanos altamente capacitados e produzir conhecimentos relevantes”, afirma, em artigo no Jornal da USP, ex-chefe do Departamento de Química Fundamental. Deixando para outra ocasião o debate de o que possam significar “conhecimentos relevantes”, falemos um pouco sobre a formação profissional propiciada pelo IQ. O instituto pode estar formando químicos de excelentes conhecimentos na área. Sobretudo se aceitarmos a ideia – equivocada – de que todos os alunos se dirigirão à investigação científica ou ao ensino. Contudo, a visão acerca da atividade didática do instituto permanece estagnada, malgrado grupo de docentes devotados ao ensino superior. A boa qualidade das aulas resulta dos esforços individuais de professores e de pequenos grupos. Não há uma política geral do instituto.

Consequentemente, fora o conhecimento decorado e habilidades, eventualmente, adquiridas em aulas práticas, o aluno se forma quase no mesmo nível de maturidade com que ingressou no ensino superior. Isso ao mesmo tempo em que a habilidade de pensar criticamente se torna cada vez mais demandada por gestores de empresas, segundo uma instituição externa que até oferece curso gratuito de pensamento crítico, pois, alega, se trata de algo do que os recém-formados de universidades carecem. Em contraste com essa necessidade, o IQ até sofreu retrocesso. Perdeu o pioneirismo em matérias como o estudo de lógica e filosofia da ciência e ética para o profissional de química, cientista ou atuante no setor de produção de bens tangíveis. Disciplinas orientadas para a pós-graduação, mas abertas aos alunos de graduação. Elas acabaram extintas por desinteresse geral, originado de uma visão obsoleta, conforme revelam atas das reuniões do Conselho e da Congregação.

Em face das mudanças que estão ocorrendo na sociedade e no setor produtivo industrial, em nível nacional e global, nos anos próximos o Instituto de Química deve, a nosso ver, se reorientar em dois aspectos: aproximar-se do setor empresarial e ampliar a formação de seus alunos com a inclusão de disciplinas externas à química, que promovam a capacidade de pensar criticamente e de se comunicar em vários níveis, organizadas em especial para os futuros profissionais da ciência e da tecnologia. É verdade que para tanto vai se necessitar de educadores capazes de atuar na interface dos vários campos do saber. Gente, até agora, pouco entendida e valorizada pelas mentes cientificistas descompromissadas com a sociedade.

Assim se projetam os próximos anos do instituto enquanto celebra seu jubileu de prata.

 


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