Eunice Durham, uma jacobina

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 21/07/2022 - Publicado há 2 anos

Professora Eunice Durham (NUPPs – USP) no debate do IEA sobre os Desafios Institucionais da Universidade – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Janice Theodoro da Silva – Foto: Reprodução
F aleceu, no dia 19 de julho, a professora Eunice Ribeiro Durham, graduada, na década de 1950, na época, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
 

Eunice teve papel importante para a USP e para estudantes de diversas gerações. Para os primeiros, Eunice significou um novo modelo de mulher, tanto do ponto de vista acadêmico como político. Era competente e desafiadora, mesmo diante dos professores, homens, bem instalados na cátedra. Certa vez, no pátio, vi uma senhora discutindo de maneira “decidida” com um professor muito respeitado pelos alunos. A cena me chamou a atenção pela forma como Eunice gesticulava com o professor Florestan Fernandes, sem medo. Uma colega me alertou: “Cuidado com ela. Pense bem antes de se matricular na disciplina dela. Até com ele (Florestan) ela discute. Imagine o que fará conosco!”.

Eunice representou, nos anos 1960 e 70, um referencial em relação às pesquisas de ponta, atualizadas internacionalmente, e um estilo, uma certa insubmissão a diferenças de gêneros. Evidentemente, esta problemática (a insubmissão) não se apresentava com as roupagens atuais. Os tempos eram outros.

Suas preocupações eram acadêmicas, institucionais e, especialmente, políticas. Estudou dinâmicas familiares a partir da cidade de Descalvado, sem deixar de considerar, sob a direção de Egon Schaden, a relação entre o seu objeto e o país em que vivia. Ela, outras colegas e estudantes passavam a integrar os quadros universitários em um momento de perseguição política e valorização do pensamento conservador, no Brasil.

Naquela época, ressoavam fortes, no Brasil, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, ocorridas em 1964.

A energia e amplitude de suas preocupações políticas conduziriam Eunice Durham para a ciência política. Diria ser este o segundo momento de sua história, o lugar onde ela encontrou a sua natureza mais profunda. Estudou a formação do Estado Moderno para pesquisar movimentos sociais, caminho necessário para participar da construção do País, em tempos difíceis. Eunice representava, por meio de sua experiência acadêmica, uma docente com preocupações acadêmico-nacionais, ultrapassando os muros da Cidade Universitária.

O terceiro momento de sua trajetória foi marcado pelo engajamento na vida política institucional e nacional. Eunice tomou posições nem sempre fáceis de serem compreendidas na conjuntura. Questionou os estudantes afirmando não existir apoio popular para fazer a revolução. Estava certa. Defendeu posição contrária à porosidade das fronteiras, entre professores e alunos (comissões paritárias). Ao mesmo tempo, Eunice, após o assassinato de Vladimir Herzog, foi uma das responsáveis pela criação da Associação dos Docentes da USP (Adusp).

Como ela mesmo relembra, numa entrevista para a Revista Fapesp, a sua mudança de rumo, sobre o papel da Universidade, se deu ao vislumbrar o fato de a Universidade não ser sinônimo de ensino superior, mas parte de um sistema diversificado de instituições, possível, somente, de ser avaliado em contexto. Na entrevista, Eunice cita uma conversa com um professor da Politécnica, responsável pela mudança de suas posições. Disse ele, para ela: “Eu sou um especialista em grandes estruturas. Basicamente, grandes pontes e grandes prédios. Como vou aprender a fazer isto dentro da universidade? Não posso fazer pontes aqui para treinar”. Essa conversa teria mudado a sua maneira de avaliar as relações entre a universidade e as diferentes formas de inserção da instituição na sociedade.

Eunice Durham foi uma das fundadoras do Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino Superior (Nupes), presidente da Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Ocupou as Secretarias Nacionais de Ensino Superior (1991-1992) e de Educação Superior (1995-1997), vinculadas ao Ministério da Educação, e foi membro do Conselho Nacional de Educação de 1997 a 2001.
Embora todas estas atividades tenham grande importância para a educação superior no Brasil, a atividade, do meu ponto de vista, que melhor simboliza Eunice Durham é o seu envolvimento com a produção de um livro sobre as perseguições políticas na USP. Trabalho publicado pela Associação dos Docentes da USP (Adusp) em 1978, na gestão do professor Modesto Carvalhosa.

Eunice relatou e favoreceu a confecção de um livro de denúncia às agressões da ditadura cometidas contra alunos, professores e funcionários da USP. Foi ela a relatora da comissão da qual faziam parte Maria Carolina Soares Guimarães, Jessita Nogueira Moutinho, Antonio Carlos Martins de Camargo, Alberto Luiz da Rocha Barros e Percival Brosig. Hoje é fácil contar a história da ditadura. Naquela época exigia coragem, senso de justiça e visão política. O livro, dada a sua importância, foi reeditado pela Adusp em 2004 e em 2018, com apresentação de Rodrigo Ricupero.

Eunice foi escolhida para fazer parte da Comissão da Verdade da USP. Nada mais justo. Foi ela uma das mais importantes responsáveis pela produção da memória da Universidade de São Paulo em tempos de ditadura. Levou à frente um trabalho difícil, sem fazer concessões. Em reunião com os membros da Comissão da Verdade, Eunice abriu mão do novo desafio, por motivos de saúde, mas lembrou, com propriedade, o fato de os alicerces do relatório já estarem presentes no trabalho realizado, anos antes (1978), pela Adusp.

Estava em companhia do professor Carlos Guilherme Mota, seu colega, aposentado do Departamento de História, quando soube do seu falecimento. Perguntei a ele como definiria Eunice, em uma só palavra.

Ele disse: Uma jacobina. 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.