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Kimi Tomizaki – Foto: Arquivo Pessoal
Em que pesem as inúmeras contradições dos governos petistas e o fato de que determinados direitos também foram fragilizados nesse período – poderíamos citar a sanção, ainda que parcial, da lei antiterrorismo, que abriu a possibilidade de criminalização de um amplo leque de ativismos políticos –, é inegável que os governos Lula e Dilma foram marcados por avanços do ponto de vista das políticas sociais, de emprego e geração de renda que, por meio de diferentes mecanismos, permitiram a mobilidade social ascendente de uma parte significativa da população.
No entanto, estudos apontam que tal mobilidade é de “curta distância” e ainda persiste, portanto, um alto índice de desigualdades de oportunidade e de resultados. Evidentemente que não se trata aqui de realizar um balanço desses governos, o que já vem sendo amplamente discutido. Este breve texto pretende, tão simplesmente, contribuir com uma reflexão sobre um “efeito subterrâneo” dos processos de avanço ou retirada de direitos: os conflitos geracionais.
As relações intergeracionais são, por essência, contraditórias e é impossível determinar para cada “encontro geracional” quais sentimentos darão o tom e as cores predominantes dessa situação. Da solidariedade ao confronto, o fato é que as gerações não se encontram em um vácuo histórico, político ou social. Ao contrário, são as próprias transformações nesses planos que precipitam o surgimento de novas gerações.
É precisamente nesse sentido que o debate sobre o acesso a alguns direitos fundamentais tem uma forte implicação com o fenômeno geracional, porque a ampliação, ainda que momentânea, ou a retirada radical de direitos produzem gerações que tiveram e terão acessos absolutamente desiguais a um conjunto de direitos determinantes para se alcançar determinados “lugares” no mundo social.
A noção de geração é marcada por uma multiplicidade de sentidos que remetem à amplitude que tal conceito pode assumir no âmbito dos estudos da área: de gerações históricas e políticas às gerações estritamente familiares, por exemplo. Em todos os casos, de modo sumário, o que define um conjunto geracional são as experiências comuns capazes de criar laços (profundos) entre determinados indivíduos que se sentem irremediavelmente ligados por um destino comum, o que se desdobra em uma dada forma de conceber o mundo e seu lugar nele.
Nesse sentido, a definição das experiências comuns compartilhadas é uma operação fundamental para o estudo das gerações, e tais experiências estão condicionadas tanto à conjuntura política, social e econômica na qual indivíduos e grupos estão inseridos quanto à posição social ocupada por eles em uma dada sociedade. E se experiências, de diferentes ordens, são capazes de amalgamar modos de vida, destinos e formar quadros de percepção e avaliação da realidade dos membros de diferentes gerações, não seria exagero dizer que as vivências ligadas ao acesso ou à negação de determinados direitos são basilares na definição dos modos de pensar e agir das gerações visto que constituem seu “universo de possíveis”, ou seja, um conjunto de expectativas em relação ao futuro, que orienta investimentos (objetivos e subjetivos) de ordem individual, familiar e coletiva.
Desse modo, em períodos nos quais se acelera o processo de retirada de direitos, constituímos em diferentes dimensões sociais (da família, escola, ao trabalho e universidade) grupos que, tendo acesso a direitos desiguais, enfrentarão mais dificuldade para estabelecer laços de solidariedade, acirrando os processos de disputa e a produção de ressentimentos. No centro dessa discussão, encontram-se duas dimensões fundamentais da vida em nossas sociedades: o acesso à escolarização e ao mercado de trabalho.
No que tange aos setores mais vulneráveis da classe trabalhadora, uma das contradições fundamentais produzidas pelo lulismo situa-se precisamente no aumento das expectativas das novas gerações, via alongamento da escolarização, que contrasta com as reduzidas possibilidades de inserção profissional em postos de trabalho compatíveis com esses investimentos escolares e com as expectativas tanto dos jovens quanto de suas famílias.
É preciso considerar que no Brasil o alongamento da escolarização, sobretudo o acesso ao ensino superior, foi constituído por meio de um intenso processo de segmentação do sistema de ensino, que hoje é dividido entre instituições que dão acesso a diplomas com “valores” absolutamente diferentes, o que é facilmente identificável na hierarquização entre universidades públicas e privadas. Por outro lado, a melhoria dos indicadores educacionais no Brasil, nas últimas décadas, tem conduzido a um concreto crescimento da mobilidade educacional intergeracional, ou seja, ao aumento da média de anos de escolaridade de uma geração a outra e, consequentemente, a uma redução das desigualdades educacionais formais.
No entanto, de uma maneira geral, os estudos apontam que a mobilidade intergeracional de educação tem sido mais significativa do que a de renda, ou seja, a aquisição de diplomas não se converte automaticamente em renda, o que talvez já aponte para uma crescente inflação e desvalorização dos diplomas.
É nesse quadro pouco animador que diferentes gerações negociarão, se apoiarão ou se confrontarão diante da patente desigualdade de condições de estudo e trabalho a que tiveram acesso, e nesse encontro um ponto de forte tensionamento é o fato de que os mais jovens têm tido seu horizonte profissional e pessoal estreitado pela precariedade dos contratos de trabalho e instabilidade em relação ao futuro.
Em grande medida, esse é o cenário que encontramos atualmente nas universidades públicas com suas diferentes gerações de docentes e funcionários técnico-administrativos, o que nos impõe uma tarefa urgente de reflexão e ação a respeito dos impactos dessa situação sobre o imenso desafio de construirmos uma universidade pautada, ao mesmo tempo, pela excelência acadêmica, por práticas políticas transparentes e democráticas, responsabilidade institucional e solidariedade intergeracional.
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