Em busca do adjetivo “icônico”

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH/USP

 Publicado: 24/05/2024
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Um novo termo para “excelência”

O colega jornalista Paulo Hebmüller chamou-nos a atenção para um emprego da palavra “icônico” que tem sido frequente no português brasileiro já faz algum tempo. Vejamos três exemplos:

Referindo-se à estrela pop, a palavra “icônica” foi usada para descrever Madonna como uma figura reconhecida e admirada, símbolo em sua área de atuação. Em “projeto icônico”, o termo parece contribuir para a construção da imagem de um projeto arquitetônico desejado, com apartamentos que podem valorizar-se ao longo do tempo. Finalmente, qualificando um tipo de calçado, “icônico” está sendo usado para apresentá-lo como altamente reconhecido, distintivo e emblemático.

Frases como essas, que podem ser facilmente coletadas em breve pesquisa na internet, registram um emprego do adjetivo “icônico” que vem ganhando projeção. Nesse uso, o vocábulo qualifica algo que se destaca ou se distingue de itens semelhantes, tornando-se parâmetro de excelência.

As origens e a hipertrofia de sentidos

O termo “icônico” tem raízes na palavra grega eikonikós (“fielmente representado”), que nos chegou por intermédio da língua latina. Nesse sentido, Rafael Bluteau, nosso primeiro dicionarista, já o definia, no final do século XVII e início do XVIII, como “feito ao vivo, ao natural”. Assim, um ícone seria algo que só poderia ser feito/construído a partir do exame de um modelo original, fielmente representado.

Essa mesma semântica é encontrada no século XIX, quando Luís Maria da Silva Pinto definiu o significado da palavra como “pintado ou esculpido ao vivo, ao natural”.

No começo do século XX, Caldas Aulete apenas reiterava o sentido grego: “o mesmo que icástico; (pint. e escult.) feito ao vivo, representado ao natural: Pintura icónica; estátua icónica”.

Considerando esse sentido de base, intriga pensar sobre como o termo passou a ser usado como um qualificador positivo enfático, atribuindo valor ao que é adjetivado como “icônico”.

Um novo deslizamento semântico

É possível inferir que o sentido original de “icônico” como “fielmente representado” foi se associando à ideia de algo que se destaca ou se diferencia dos demais itens de sua categoria. Essa hipótese é coerente com o fato de que certos elementos visuais ou certas características específicas têm o poder de evocar instantaneamente um conceito, uma ideia ou uma identidade – tal como, por exemplo, a silhueta da maçã mordida é um ícone da marca Apple.

Nesse sentido, quando certo elemento é descrito como icônico, entende-se que ele possui qualidades tão marcantes que o tornam o exemplar ideal, o modelo imediatamente reconhecível e memorável, destacando-se em relação aos demais. Essa mudança semântica reflete uma expansão na compreensão da palavra, que agora abrange a ideia de proeminência, distinção e superioridade em geral.

O pulo do gato

Dessa forma, a cantora Madonna, projetos arquitetônicos e modelos de calçados podem beneficiar-se da aplicação dessa expansão de significado ao serem descritos como icônicos. Em síntese, a ideia de representação fiel se expande, passando a indicar aquilo que se sobressai ou se diferencia dos demais mediante uma fusão de originalidade, refinamento técnico e percepção de valor, para construir com maior ênfase a ideia de superioridade.

É uma valorização que se realiza por meio da linguagem: em seu uso mais recente, o adjetivo busca traduzir de que modo um exemplar de certa categoria deixa de ser “só mais um”, para ser, na visão do enunciador, a representação mais bem acabada do conjunto do qual faz parte. Ou, em uma só palavra, um ícone.

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