Consciência negra em tempos de racismo sangrento

Por Eunice Aparecida de Jesus Prudente, advogada feminista, abolicionista, professora da Faculdade de Direito da USP, e Artêmio Prado Silva, advogado e vice-presidente da Comissão da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul

 09/12/2020 - Publicado há 4 anos
Eunice Aparecida de Jesus Prudente, docente da Faculdade de Direito da USP – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

 

Artêmio Prado Silva – Foto: www.oabrs.org.br

 

Em tempos do liberalismo à brasileira, enquanto o mundo erigia a liberdade como o primeiro atributo da pessoa, em terras brasilis vigia a escravização como uma das fases mais violentas e graves do sistema socioeconômico capitalista. A escravização de pessoas possibilitou a esse sistema mercantil alcançar a fase da industrialização – antes das manufaturas de Bristol, os ingleses já construíam os navios negreiros e a Holanda já publicara seu Código Negro, com as regras para o tráfico de pessoas escravizadas. Para riqueza sobretudo das atuais potências que concedem boa qualidade de vida aos seus cidadãos, mas que no séculos XVI, XVII, XVIII e XIX forjaram riquezas traficando africanos para as Américas como escravizados e também explorando a mão de obra escravizada.

No caso específico do Brasil, vamos observar que esta escravização quase adentrou o século XX. Mas observe-se que até o século XIX as relações de Portugal com os ingleses muito lucraram com o tráfico de pessoas, inclusive aplicando o capital suficiente para chegar à sua industrialização. Mas, no século XIX, já não interessava mais à burguesia liberal, sobretudo inglesa, a escravização. A revolução industrial nas primeiras fases tinha compromissos com uma nova classe social orientada pelo socialismo, o operariado urbano, gentes expulsas de áreas rurais para o trabalho nas cidades. Providências concomitantes com práticas políticas violentas em busca de matéria-prima na América Latina e na África, já em tempos de neocolonialismo (Conferência de Berlim: Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha, Dinamarca, Portugal, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Império Alemão, Suécia, Noruega, Império Austro-Húngaro e Império Turco-Otomano de 1884 a 1885).

A Inglaterra necessitava de mercados consumidores para suas manufaturas e impunha-se entre os Estados produtores com ampla campanha contra a “escravidão”. No Brasil, a despeito da lei de 1831, o tráfico prosseguiu ilegalmente pois a lei de 7 de novembro de 1831 declarava livres os africanos importados após a proibição, e incriminava os traficantes nos termos do artigo 179 do código criminal de 1830 – “reduzir à escravidão, pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade” – mas também impunham aos condenados despesas com reexportação de africanos traficados para África. Imperavam interesses econômicos, pois foram ilegalmente trazidos para o Brasil 560 mil africanos depois de 1831, segundo dados oficiais do Relatório do Ministério de Estrangeiros, de 1852, conforme pesquisa de Evaristo de Moraes (1924 e 1933).

Assim o tráfico prosseguiu mesmo após a Lei Eusébio de Queirós, lei nº 581 de 1850. Mas o tráfico prosseguiu. Nos jornais da época havia anúncios sobre vendas de escravizados, traziam idade e a expressão “escravos de nação” sinalizando tratar-se de escravizados de naturalidade africana.

A expressão “lei para inglês ver” advém dos descumprimentos da Lei Eusébio de Queirós. Iniciada a fase de manufaturas toma-se a bandeira liberal contra as escravizações. A Guerra do Paraguai, evento histórico grave de 1864 a 1870, inviabilizou o prosseguimento da escravização de negros no Brasil.

Nossas inconfidências foram promovidas do decorrer da história para libertar o Brasil do julgo português fundamentadas no pensamento liberal, trazido pelos moços que se formavam na Europa, mas nunca tiveram coragem de armar um negro. Posto que integravam famílias escravizadoras, mas o governo monárquico o fez diante de graves necessidades no enfrentamento da guerra. Na formação dos batalhões dos Voluntários da Pátria há a atuação de muitos negros. Pois quem participasse da guerra, conquistava a cidadania e muitos participaram. Mas, se a população negra padeceu perdendo vidas nesse episódio, o resultado foi a desorganização total do sistema de escravização: com muitas rebeliões e formação de quilombos com negros fugidos da escravização.

Diante da crise, o governo monárquico inicia uma série de leis que bem explicitam o liberalismo à brasileira. Pela Lei do Ventre Livre, lei nº 2040 de 1871, o filho da escravizada seria livre. Mas observa-se nos primeiros artigos da lei que o proprietário da mãe escravizada tinha duas opções: entregar o ventre livre ao Estado, que deveria criá-lo e formá-lo o cidadão e receber dez mil réis, ou permanecer com aquela pessoa, que o senhor proprietário da mãe deveria cuidar até os doze anos, e depois esta pessoa deveria trabalhar para pagar a educação que recebeu. Ou seja, foram todos escravizados, e aqueles que foram entregues aos governos foram abandonados pelas ruas das cidades brasileiras.

Depois temos a lei nº 3.270 de 1885 – é a Lei dos Sexagenários, que libertava os escravizados aos 60 anos. Legislação complexa, com muitas referências às matrículas que identificavam os escravizados, propiciando muitas formas de descumprimento da própria lei. Condições de vida imposta aos escravizados denunciavam que aos sessenta anos os escravizados realmente não tinham mais forças para o trabalho e assim os senhores é que se livraram de idosos improdutivos para o sistema escravista. Para finalmente por força das insurreições presentes em todo o Estado brasileiro e aos movimentos abolicionistas, bem como ebulições políticas contra a monarquia, viu-se no governo monárquico a extinção da “escravidão”.

Mas atente-se para a História: houve cobranças constantes dos senhores da terra e dos escravizados buscando indenizações junto ao governo imperial. O que levou o ministro da Fazenda, Rui Barbosa, da Primeira República, a queimar documentos públicos para impossibilitar a busca de indenizações em face do governo.

Um histórico Dia da Consciência Negra

E foi lá no século XX, no Rio Grande do Sul, onde os negros são 17% da população (São Paulo, somos 34%; na Bahia, 70%; no Pará, 70%, nos termos do IBGE), que ocorreu a construção da Consciência Negra a partir dos feitos de Zumbi dos Palmares.

Aí vem um irmão querido em negritude, Artêmio Prado Silva, advogado, vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB do Rio Grande do Sul nos relatar, coloquialmente, a construção da consciência negra no dia 20 de novembro.

Um histórico do Dia da Consciência Negra
Após seis dias de discussões e deliberações no Parlamento Imperial, a Princesa Isabel adiantou os brasileiros o seguinte texto, que com apenas dois artigos definiu o destino do país que no próximo ano se tornaria uma pretensa república:
Art. 1º É declarada extincta desde a data d’esta lei a escravidão no Brazil
Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.”

Foi a partir destes que se fez abolir a escravidão no Brasil. Aos seis dias de debates entre os parlamentares sucederam inúmeros eventos entre os escravizados. Quando, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a lei para liberação de milhares de negros e negras ainda escravizados nesta terra, revolvendo mais de trezentos anos de sofrimentos, dores e um imenso oceano tinto de sangue, isso foi feito em quase duas linhas. No longo dia que se seguiu, criava-se uma classe de pessoas sem qualquer assistência, e totalmente indesejada.

Não foi sem propósito que parte dos movimentos negros, durante os mais de cem anos passados, criticaram a ideia de que fora esta lei uma pedra fundamental na construção da liberdade. Para esses grupos, era necessário, e ainda segue sendo, um próximo movimento, uma segunda abolição.

Foi a partir dessa ideia de que a abolição foi um processo incompleto que o movimento negro passou a reivindicar direitos fundamentais, e nos anos 70 formulou a proposta de uma nova data de caráter nacional que simbolizasse este desejo coletivo. O abandono do 13 de maio foi uma proposta que rompeu com a narrativa de uma liberação pacífica e apresentava uma ideia nova de consciência negra ao lado de um projeto de futuro com protagonismo e igualdade para os afrodescendentes.

Foi este pensamento que mexeu de forma inquieta com o poeta e professor Oliveira Silveira. Tanto que no final da década de sessenta, através de sua poesia, ele manifestava seu incômodo com a data da promulgação da Lei Áurea:

Treze de Maio traição. Liberdade sem asas e fome sem pão”.

O Brasil da época era um país completamente desigual, cuja base social era composta pelas pessoas de pele escura, enquanto as de pele clara estavam no poder.

No início dos anos 70, Oliveira Silveira reunia-se com um pequeno grupo de amigos no centro da Cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mais especificamente na Rua da Praia, defronte ao prédio da Joalheria Masson. Com o passar do tempo, o grupo foi crescendo e culminou com a consolidação do Grupo Palmares, focado nos estudos de artes, literatura e teatro.

Segundo Oliveira Silveira, a primeira reunião oficial do grupo aconteceu na casa de seu falecido sogro, o senhor José Maria Rodrigues, no bairro Bom Fim, antiga colônia africana de Porto Alegre. Neste dia o sogro do poeta lhe presenteou com o livro do português Ernesto Ennes As Guerras nos Palmares, de 1938. E foi em virtude deste livro que Oliveira Silveira se inspirou para a evocação do 20 de novembro.

A denominação do grupo como Palmares ocorreu na segunda reunião oficial, na casa dos pais do Dr. Antônio Carlos Cortes, no centro de Porto Alegre. Outras reuniões ocorreram no bar da Faculdade de Filosofia no Campus Centro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A primeira e histórica celebração brasileira do dia 20 de novembro, Dia da Consciência, aconteceu no dia 20 de novembro de 1971. Na noite daquela data, o pioneiro Grupo Palmares fez ato evocativo à resistência negra no Clube Social Negro Marcílio Dias, que se localizava na Rua Praia de Belas na capital gaúcha.

O evento valorizava o herói negro Zumbi, líder do Estado negro Quilombo dos Palmares. Era um contraponto ao 13 de maio de 1888, dia no qual a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que abolia a escravidão mas não garantia direitos humanos à população negra brasileira. Desde então, o grupo foi seguido por outros que aderiram à data. Em 1978, conhecendo as celebrações oriundas de Porto Alegre, o Movimento Negro Unificado (MNU) de São Paulo passou a fazer manifestações em alusão ao líder Zumbi. Como o MNU mantinha ramificações em várias cidades, outros Estados somaram-se às evocações ao Quilombo dos Palmares, culminando com a Marcha Zumbi – 300 anos, em 1995.

Em 2003, o 20 de novembro entrou para o calendário escolar como Dia Nacional da Consciência Negra, através da Lei nº 10.639. A lei inclui a História da África Negra e das culturas afro-brasileiras no ensino oficial do País, bem como fomenta feriados municipais e estaduais em torno da data.

Eis a construção da cidadania negra pelos movimentos sociais. Sempre presente, o movimento negro durante séculos da escravização expressou-se pelas rebeliões e formação de quilombos, e como a “abolição da escravatura” foi inconclusa, sem nenhuma atenção estatal ou providência para inclusão dos afrodescendentes, a luta prosseguiu em tempos republicanos no enfrentamento da discriminação racial, sobretudo no mercado de trabalho.

Em ação conjunta, os movimentos sociais venceram o autoritarismo e erigiram a atual Constituição Federal com os direitos humanos fundamentais. Momento novo para os brasileiros, Constituição que vem propiciando legislações que respeitam e alcançam nossa diversidade, inclusive étnica, atentem para a lei nº 12.288, de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial. A exemplo de legislações específicas para grupos vulneráveis, efetiva para os negros os direitos humanos fundamentais, determinando obrigações de fazer e de não fazer às instituições públicas.

Resistência às conquistas, no Novembro Negro um assassinato

Ainda carecemos das políticas públicas implementando as disposições do Estatuto da Igualdade Racial nas áreas da saúde, educação, segurança pública, entre outras, pois não se visualiza a questão do negro brasileiro nos programas, planejamentos, reservas de verbas públicas, etc. Também não se nota interesse em especificar as normas do Estatuto nos Estados da federação e nos municípios brasileiros, o que muito colaboraria para a real inclusão racial, uma vez que impactaria na qualidade dos serviços públicos, respeitando a diversidade da população.

Entre os compromissos do Brasil ratificando há 50 anos as disposições da Convenção Internacional contra todas as formas de discriminação racial – ONU (1969) encontra-se a efetivação de políticas de ação afirmativa com tratamentos diferenciados a pessoas e/ou grupos étnicos e sociais que tenham permanecido excluídos do desenvolvimento nos Estados signatários. Pois bem, além do atraso para o início das discriminações positivas, partidos políticos houve que questionaram a constitucionalidade de leis dispondo sobre cotas étnicas para ingresso em universidades públicas perante o STF e mais uma vez o movimento negro, integrado por lideranças conscientizadas e intelectuais, tem vindo a público em defesa das políticas de ações afirmativas, buscando o Estado de justiça como constitucionalizado.

O racismo à brasileira é de marca (Florestan Fernandes), ou seja, na nossa miscigenação a pessoa que tiver os fenótipos africanos é vitimada pela diversas formas de discriminação, assim, editais de concursos públicos e mesmo das universidades fazem referências a tais fenótipos para interessados alegarem direitos a cotas étnicas, por exemplo. Mesmo assim, quando informes e dados oficiais demonstram discriminação racial nas instituições públicas e privadas autoridades negam a ocorrência de racismo. Negam dados oficiais, do IBGE, Ipea, Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, ou de organizações respeitáveis, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Eu sou da Paz, entre outras. Não há dúvida que o negacionismo inviabiliza realidades graves prejudicando providências legais ao enfrentamento da discriminação racial na defesa das vítimas, inclusive por seus defensores, sendo portanto expressão do racismo estrutural.

Em meio às reflexões do 20 de novembro assistimos atos discriminatórios, uma vez que a cidadania do negro brasileiro continua sob suspeita. Durante quatrocentos anos de escravização, abordados para responderem

quem eram seus senhores?” ou
“estavam naquele local com ordens de quem?”

E na atualidade? As revistas realizadas nos negros pela polícia nas cidades brasileiras, prosseguem desrespeitosas e violentas. Denunciar junto aos comandos e as corregedorias vem sendo o caminho.

O movimento negro, através de lideranças e todos os cultores dos direitos humanos, iluminados pelo feminismo negro, prossegue acreditando no Estado Democrático de Direito, clamando aos órgãos públicos pela efetividade da lei no respeito à dignidade da pessoa humana.

Todavia em pleno século XX a cidadania negra continua sob suspeita, tanto que ocorreu um assassinato em plena relação de consumo, a morte do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas durante a realização de compras com sua mulher no Carrefour, onde a seletividade racial foi manifesta, posto que qualquer dúvida quanto ao comportamento de consumidores cabe aos fiscais, chamados de seguranças, acionarem a polícia, que é o órgão público responsável pela segurança pública, detentor do poder de polícia. O espancamento da pessoa do consumidor até a morte permanece inaceitável. A discriminação racial ocorreu em público e nota-se que praticantes e assistentes no local não se indignaram pois aquela pessoa, negra, não teve para eles o mesmo valor. Mais uma evidência de racismo estrutural que somente será alcançado com nova educação formando cidadãos brasileiros, fundamentada na informação e na transparência públicas.


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