Álvaro de Vasconcelos na USP: o bicentenário e o futuro da liberdade

Por Pedro Dallari, professor e diretor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP

 24/10/2022 - Publicado há 2 anos
Pedro Dallari – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais (IRI) em 2014 e 2015, o renomado intelectual português Álvaro de Vasconcelos voltou à USP no último mês de setembro para participar de eventos de nossa universidade relacionados à reflexão sobre o bicentenário da independência do Brasil.

Além de acompanhar o ato conduzido pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior em que se deu o lançamento do livro que o embaixador Rubens Ricupero coordenou para a Cátedra José Bonifácio – Balanço e Desafios no Bicentenário da Independência, publicada pela Edusp –, Álvaro participou no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, como palestrante, em dois outros eventos promovidos pelo Centro Ibero-americano (CIBA). Com os professores da USP Renato Janine Ribeiro, atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Celso Lafer e Feliciano de Sá Guimarães, debateu o fenômeno da crise da democracia no mundo contemporâneo. E, em companhia dos professores da USP Felipe Loureiro e Alexandre Moreli e de convidados estrangeiros, os professores Ignacio Berdugo Anthony Pareira e Enrique García, todos com vínculos históricos com o IRI, tratou da visão internacional sobre o bicentenário, em evento que teve o apoio da Fapesp.

Respaldado em extraordinária capacidade de compreensão dos dilemas políticos e sociais do nosso tempo – produto de trajetória intensa e variada, que, entre as muitas atividades que exerceu, compreendeu a direção do prestigioso Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (EUISS), baseado em Paris, e a criação do Forum Demos, think thank de destaque na cena internacional –, Álvaro desenvolveu, nos eventos em que esteve na USP, análise bastante percuciente e instigante sobre os atos oficiais de celebração do bicentenário do Brasil. Na essência, constatou na ausência de valorização do liberalismo, elemento fundamentador do processo da Independência, contradição marcante e ilustrativa justamente da crise atual da democracia.

A pedido da direção do IRI, Álvaro elaborou um pequeno texto, em que, valendo-se da menção a eventos políticos recentes em Portugal, apresenta uma breve síntese dessa sua perspectiva sobre a cena brasileira. Na sequência, encontra-se a interessante contribuição desse notável uspiano.

O imperativo da comemoração da herança liberal

Álvaro de Vasconcelos

A comemoração do bicentenário da independência do Brasil foi uma ocasião de afirmação, nomeadamente em Portugal, da importância da herança liberal, hoje ameaçada na Europa e no mundo por uma vaga autocrática, que se assume, como afirmou o Viktor Orbán, como iliberal.

Na Europa, as referências ao bicentenário, com excepção de Portugal, embora poucas, foram significativas. A cerimónia oficial de 7 de setembro, em Brasília, foi considerada pela maioria dos analistas como uma exploração grotesca de um momento que deveria ter sido de comemoração dos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade. No Le Monde, as comemorações foram classificadas como um acto sexista e putchista.

A maioria dos artigos reflecte a deterioração da imagem do Brasil na opinião pública europeia. Apesar do significado histórico da data, ninguém esperava que o governo brasileiro a comemorasse com dignidade.

O Brasil era visto, nos anos de FHC e Lula e no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, como uma potência em ascensão e com enorme prestígio internacional. Eram reconhecidos os enormes progressos no domínio do combate à pobreza e na educação, e crescia a convicção de que o Brasil estava a emergir como uma potência indispensável à regulação multilateral de um mundo policêntrico. No relatório do EUISS para a União Europeia “Cidadãos num Mundo interconectado e policêntrico”, pode ler-se que, num índice que integra não só indicadores económicos, mas também outros, mais subjetivos – “como soft power, unidade política e o efeito multiplicador da cooperação regional” –, o Brasil é apontado como umas das cinco grandes potências de 2030.

O soft power, isto é, o poder de atracão do Brasil, era um factor relevante da influência do Brasil na cena internacional. Um inquérito mundial sobre o poder de atracão de diferentes países do mundo, levado a cabo pela BBC, em 2010, colocava também o Brasil em quinto lugar, a seguir à União Europeia, Japão, Canadá e Estados Unidos.

Hoje, quando a preocupação com a emergência ecológica é uma questão central da política europeia, o Brasil é visto como um país dominado pelo populismo, que está a destruir a Amazónia e a matar os seus habitantes. O Parlamento Europeu aprovou por larga maioria, em setembro de 2022, uma resolução para travar as importações brasileiras que resultem do desmatamento da Amazónia, e o acordo EU- Mercosul continua congelado.

As comemorações do bicentenário em Portugal deram continuidade às que, há dois anos, assinalaram a revolução liberal de 1820, no Porto. Nessa altura, salientou-se que é hoje um imperativo defender a tradição liberal de “separação de poderes” e de “libertação do povo”, de que é herdeira o Estado de Direito Democrático.

A participação, nas comemorações de Brasília, do presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, e a decisão da Câmara do Porto de emprestar o coração de D. Pedro ao Brasil provocaram uma intensa polémica. A maioria dos artigos publicados sublinhava que o que estava em causa, mais do que a independência do Brasil, há muito consolidada, era a defesa dos ideais do liberalismo político, de novo ameaçados por autocratas absolutistas. Foi, por isso, quase unânime a crítica à Câmara da cidade do Porto pela sua decisão. O autor de uma dessas críticas sintetizou a opinião de muitos, quando escreveu não ser compreensível ter-se permitido “que uma grande figura do liberalismo seja usada para compor a narrativa de um amante de ditaduras”. Em relação à participação do Presidente da República, as opiniões dividiram-se, considerando muitos que as relações com o Brasil são independentes das circunstâncias e que Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter recusado o convite.

As circunstâncias aziagas em que se deu esta comemoração impediram que tivesse sido uma ocasião para lembrar os muitos anos da luta difícil pela consolidação da democracia nos dois países, que viveram longos períodos de ditadura. Perdeu-se uma ocasião para se assumir o crime contra a Humanidade que foi a escravatura e o passado colonial português. Também não se valorizou os que lutaram pela independência do Brasil, como os heróis da Inconfidência Mineira.

As comemorações do bicentenário da inserção da Bahia na unidade brasileira, que decorrem em 2023, podem ser uma boa oportunidade para reafirmar os valores da liberdade, no Brasil e em Portugal.

A presença em Portugal de uma vasta comunidade de imigrantes brasileiros cria as condições propícias para essa iniciativa. As comemorações podem ter como actores principais os afrodescendentes dos dois países, que hoje são particularmente ativos na vida pública, cultural e universitária.


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