Brevíssima leitura de “Minsk”: um conto de Graciliano Ramos

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 Publicado: 06/05/2024

Em 1945, a pequena R. A. Editora publicou Dois Dedos – coletânea que reunia dez contos de Graciliano Ramos (1892-1953). Dois anos depois, José Olympio reeditou aquelas narrativas, acrescidas de outras três, em volume que o escritor batizou como Insônia. A primeira questão diz respeito ao título da obra: os contos ali reunidos teriam sido compostos durante os períodos de insônia de Graciliano? Ou haviam sido concebidos e endereçados a seus leitores insones?

Já que é difícil precisar resposta unívoca, concentremo-nos numa das treze narrativas. O conto Minsk integrava ambas as antologias. O enredo envolve a bela, ligeira e tocante amizade entre a menina Luciana e o periquito Minsk. Suponhamos, para fins didáticos, que a leitura atenta do conto acontecesse em três etapas: (1) Decodificação, (2) Análise e (3) Interpretação.

A primeira etapa implicaria que o leitor procedesse à cuidadosa leitura do texto, atento às palavras (substantivos, verbos, adjetivos etc.) cujo significado ele eventualmente não compreendesse, com o fim de descortinar suas camadas de sentido. Ao final desse primeiro contato com a narrativa, seria desejável que o leitor fosse capaz de resumir a trajetória da garota enquanto ela se manteve ligada ao seu animalzinho de estimação.

O segundo estágio de leitura demandaria revisitar o texto, objetivando-se coletar dados relativos à construção das personagens e do ambiente; relacionar as escolhas lexicais utilizadas pelo autor; examinar o estilo, o tom, a dicção e outros recursos formais que caracterizam a enunciação do narrador etc. A análise também pressuporia averiguar as partes constitutivas da fábula; o modo como os parágrafos foram dispostos no conto; a extensão e estrutura das frases etc.

Entre a segunda e terceira fases de contato com o texto, os elementos reunidos serviriam ao propósito de propor hipóteses, ou seja, chaves interpretativas. Eis o momento de o leitor se perguntar a razão do título dado ao conto (Menka é um rio que banha Minsk, capital da Bielorrússia, estado que pertenceu à antiga União Soviética, entre 1919 e 1991; Minsk também pode se referir à mitologia protagonizada por um gigante…); averiguar se os nomes das personagens contêm mensagens a ser decifradas (o carroceiro Adão, a criada sem nome, o tio Severino, a irmã Maria Júlia…).

Durante a terceira leitura do conto, outros elementos demandariam redobrada atenção. Em favor da brevidade, menciono a cor verde-amarela da ave (alegoria do Brasil?), mais as penas “tingidas” de vermelho (símbolo da esquerda soviética?).

Além das características do pequeno animal, poderíamos considerar a identificação simbólica entre a menina e o periquito, o que talvez explicasse por que Luciana grita de modo “selvagem”; ou porque ela baixara “a crista, humilhada”, quando uma de suas brincadeiras resultava em acidente de percurso.

Essa aproximação entre Luciana e Minsk é sugerida gradativamente, pautada pelo comportamento e pelas ações que as personagens compartilham. Desde que Minsk se tornara seu parceiro de pequenas e grandes aventuras:

“Luciana se encolhia pelos cantos, vagarosa, Minsk empoleirado no ombro. Sentia-se novamente miúda, quase uma ave, e tagarelava, dizia as complicações que lhe fervilhavam no interior, coisas a que de ordinário ninguém ligava importância, repelidas com aspereza”.

Minsk e Luciana vão sendo contagiados por determinadas características e atitudes em comum. Incompreendida pelos adultos “ranzinzas”, a menina “estouvada” encontra no diálogo com as árvores e as paredes, mas também nas falas inventadas com d. Henriqueta da Boa Vista (essa senhora imaginária, cujo nome exprime fidalguia) e particularmente nos protestos de Minsk (“Eh! Eh!”), seus principais canais de interlocução.

Nesse sentido, Minsk pode ser percebido como contraparte de Luciana. Tarefa difícil é não se comover com a humanização e o destino da alegre e doce avezinha, personificada às linhas finais do conto:

“A mancha pequena agitava-se de leve, tentava exprimir-se num beijo:
— Eh! eh!”.

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