Há poucos meses, nós, os que sempre lutamos no Brasil pelas universidades públicas de excelência, respiramos aliviados. Por poucos votos, o País se livrou de um político que, na sua mediocridade, tinha como um dos objetivos programáticos destruir as universidades públicas. O discurso de Bolsonaro e seus asseclas começou por descrever as universidades públicas como lugares onde as únicas características seriam a balbúrdia, as drogas e o doutrinamento marxista. Nessa visão nada aconselhava a juventude do “meu povo” (apud Jair Messias) de tentar se educar numa universidade pública.
Alguns acreditaram que essa visão sobre universidades públicas era somente um discurso inserido na pauta de costumes, mas a prática orçamentária rapidamente mostrou como se pode afogar instituições. Nas federais, os cortes orçamentários e as nomeações de reitores fora da lista tríplice foram instrumentos largamente usados no caminho da tentativa de destruição das universidades públicas. Esta análise, feita mil e uma vezes durante o mandato de Bolsonaro, seria incompleta sem adicionar que os salários dos professores não foram cortados. O que ficou numa descida suicida foi a ameaça de acabar especialmente com as instituições onde, por décadas, se construiu uma cultura de excelência que, para se manter, precisa bem mais do que salários. Isso sem falar da aguda restrição dos fundos federais para bolsas e pesquisa.
E aqui preciso definir o que entendo como excelência para não pairarem dúvidas sobre o significado dos meus termos. Apesar de ter escrito várias vezes sobre ensino pós-secundário, posso afirmar que a minha posição com relação a esse tema continua minoritária. O ensino pós-secundário público, a meu ver, deve ser diferenciado (como já escrevi em artigo no Jornal da USP) e todas as partes do sistema têm a mesma importância, por cumprirem missões distintas.
Uma, e somente uma, das partes do sistema de ensino pós-secundário é formada por universidades de excelência, que podem ser identificadas em qualquer ranking nacional ou internacional de universidades. Hoje, este pequeno conjunto de universidades é responsável pela imensa maioria da produção acadêmica, forma quadros disputados pelo mercado de trabalho, tem uma intensa participação na socialização do conhecimento, enfim dá uma contribuição imensa à construção de uma sociedade moderna e mais justa. Ao mesmo tempo, o conhecimento e o pessoal produzido nesse conjunto de universidades são determinantes nos poucos setores onde os produtos brasileiros ocupam um lugar internacionalmente relevante
Assim, foram as universidades de pesquisa, sustentáculos de uma cultura de excelência na pesquisa, no ensino e na extensão, as que se viram mais ameaçadas no governo anterior.
A Universidade de São Paulo se destaca em todos os sistemas classificatórios. Por ser uma instituição estadual, num Estado onde a sociedade contribui há décadas com as universidades estaduais e financia a mais importante Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp), a tentativa de afogar as universidades públicas no governo anterior foi menos sentida na USP do que nas universidades federais no mesmo Estado. Porém, é difícil prever quanto tempo esta situação perduraria se Bolsonaro fosse reeleito, pois o afogamento da Capes, do CNPq, da Finep e os cortes do FNDCT já estavam afetando pesquisa e pós-graduação na USP.
A USP vem se recuperando de um período extremadamente duro que incluiu falta de disciplina financeira, governo Bolsonaro e pandemia. A combinação destes desafios resultou num encolhimento dos quadros de professores e demais servidores e na diminuição de investimento em infraestrutura. Apesar de tudo isto, a USP conseguiu, com o sacrifício de muitos, incrementar a representatividade de grupos antes minoritários e manter a sua excelência. A Universidade, pelo trabalho de seus docentes, alunos e funcionários, sob as administrações do Zago, Vahan e Carlotti Jr., vem recuperando a sua capacidade de contratação de pessoal e investimento em infraestrutura.
A criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento é um dos exemplos da determinação da USP de não só acolher a diversidade, mas colaborar para garantir a permanência. Incorporação da inovação como elemento mobilizador de pesquisa e contato com a sociedade é mais um exemplo do dinamismo com que a USP reconhece as mudanças sociais e a elas se adapta, mantendo a excelência acadêmica. Estas mudanças são crescentemente reconhecidas pelas posições que a USP alcança nas classificações de universidades feitas no Brasil e no exterior.
Mas o fervor revolucionário que se recusa a observar as condições objetivas tende ao fracasso e muitas vezes leva à destruição de instituições públicas que, a muito custo social e um enorme esforço dos contribuintes, alcançaram um destaque comparável ao da USP. É somente dentro dessa ótica que posso entender a presente greve na USP, onde se reivindicam dinâmicas e investimentos impossíveis nas condições objetivas que são olimpicamente ignoradas. Reivindicar, por exemplo, a contratação imediata de centenas de professores já desconhece, ou pretende desconhecer, todo o arcabouço legal que cerca o rito de contratação de um servidor público. Como disse antes, a USP vem contratando, e claramente pretende recuperar o quadro docente anterior à série de crises que a Universidade enfrentou. Mas, para proteger o poder de compra dos atuais docentes e funcionários, aumentar o investimento em infraestrutura, manter a política de permanência, dentre outras responsabilidades essenciais, as contratações devem obedecer a necessidades prementes, à saúde financeira e, ao mesmo tempo, aos preceitos legais.
No entanto, eis que a greve continua, com a novilíngua de sempre, intitulando-se movimento de reivindicação legítimo e pacífico. E, ao mesmo tempo, empilhando cadeiras nas entradas das salas, pichando paredes, intimidando alunos, funcionários e professores e impedindo a livre circulação nos campi. Se as reivindicações podem ser legítimas o movimento só é pacífico em novalinguês.
Para os estudantes, alguns dos “eixos de reivindicações” incluem a contratação imediata de docentes e mudanças no Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil. É importante anotar que representantes do DCE-Livre Alexandre Vannucchi Leme e de centros acadêmicos já foram recebidos pela Reitoria da USP. A interpretação que os dirigentes do DCE fazem da disposição da Reitoria de prontamente se dispor a conversar com os estudantes é, para dizer pouco, estapafúrdia, ao declararem ao informativo Vermelho que “o fato de serem atendidos prontamente mostra que os responsáveis pela Universidade sabem que as cobranças são legítimas”. Essa interpretação nega que a disposição da Reitoria em recebê-los mostra, simplesmente, que o órgão máximo da USP nunca se negou a receber quem seja que o procure com legitimidade.
Um sindicato que manteve a sigla da antiga Associação dos Docentes da USP (Adusp), e pouco representa os professores da USP, afirma que há uma “gravíssima situação criada na USP pelas gestões de M. A. Zago e Vahan Agopyan e agravada pela intransigência da gestão Carlotti Jr.-Nascimento Arruda”. O espaço deste artigo não permite uma análise de todo o texto da Adusp. Mas o leitor, ao ler o texto disponível no site da Adusp, poderia perguntar, por exemplo, quais foram as medidas dos reitores e da vice-reitora citados que contribuíram para a alegada situação, que não é definida no texto. Poder-se-ia perguntar, também, se na novilíngua ADUSPiana seria possível encontrar explicação sobre qual foi a intransigência desta gestão que teria agravado a crise.
Já o Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) lança, como sempre, um apelo político mais forte, ao declarar: “Vamos parar em 3/10! Greve Geral contra as privatizações de Tarcísio, a Reforma Administrativa e em Defesa da Universidade”. Nesta mistureba de reivindicações partidárias contra a atual gestão do Estado se inclui a “Defesa da Universidade” sem que se possa ver onde e como o movimento defende a USP ou identifica qual é o inimigo.
A calma dos que defendem a excelência está sendo abalada por uma greve que, se mantida, pode ser mais eficiente que as políticas de Bolsonaro para acabar com a excelência e a USP. Os estudantes do DCE, os professores da Adusp e os dirigentes do Sintusp deveriam estar atentos aos comentários das redes sociais que se referem à greve atual. A grande maioria dos comentários, só citando os que li no UOL, pode se resumir da forma seguinte: com mais esta greve, liderada por estudantes e apoiada por professores e funcionários, demonstra-se que as universidades públicas estão cheias de marxistas que ao invés de trabalhar aliciam alunos para o comunismo, sugerindo a todos que é melhor enviar seus filhos para as universidades privadas.
Há que se considerar que o contribuinte paulista, que financia a USP, tem direito a que esta universidade se mantenha ativa com resultados excelentes. Greves dessa natureza somente servem para que o contribuinte se pergunte se o custo de manter a USP vale a pena. Os cidadãos de extrema direita, e as eleições recentes mostram que não são poucos, devem se sentir realizados vendo que, na perspectiva deles, as acusações contra as universidades públicas os deixam cobertos de razão.
Na minha vã esperança, que também pode ser qualificada como ingenuidade, este desabafo chama ao diálogo, sem greve ou confronto, no qual as reivindicações possam ser discutidas com civilidade nas condições objetivas da USP, do Estado e do País.
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)