Há praticamente sessenta anos adentrava o repertório da educação um novo vocábulo, algo insólito, a multiversidade. À primeira vista, poderia ser algo relacionado a “multiverso”, termo usado para descrever o conjunto hipotético de universos possíveis, incluindo o universo em que vivemos, geralmente usado em enredos de ficção científica. Contudo, o cenário de sua chegada aponta para outra interpretação.
O seu portador, Clark Kerr, é um educador e gestor acadêmico de renome: presidente da Universidade da California após ser reitor do seu campus em Berkeley, e principal autor do plano mestre de educação superior da California, que se torna referência nacional. O local do anúncio, a Universidade de Harvard, é respeitável. E a ocasião é prestigiosa: a série de Palestras Godkin sobre os Fundamentos do Governo Livre e os Deveres do Cidadão, instituída em 1903 e promovida anualmente pela Escola de Governo John F. Kennedy daquela Universidade.
Clarifica Kerr o novo conceito expondo a sua leitura da evolução da universidade. Para isso vale-se de metáforas: “A Ideia da Universidade é a de uma aldeia com seus sacerdotes. A Ideia da Universidade Moderna é a de uma cidade – uma cidade de uma indústria – com a sua oligarquia intelectual. A Ideia da Multiversidade é a de uma cidade de infinita variedade. Alguns se perdem na cidade; alguns alcançam o seu topo; a maioria constrói suas vidas dentro de uma de suas diversas subculturas”.
E avança na elucidação das características da multiversidade como cidade grande: “Há uma sensação de comunidade menor do que na aldeia, mas também a sensação de confinamento é menor. Há uma sensação de propósito menor do que na cidade, mas há mais modos de sobressair. Há também mais recantos isolados – tanto para a pessoa criativa como para o indolente. (…) Como numa cidade, há numerosos empreendimentos separados, regidos por um regramento único”.
Há, por certo, uma questão de tamanho: assim como a “cidade de infinita variedade” é necessariamente muito mais extensa do que a aldeia, a multiversidade é bem maior do que a universidade clássica (cabe aqui ter presente que a USP é uma instituição de grande porte). Mas o contexto da constatação de que a universidade se metamorfoseara em multiversidade requeria um olhar multifocal.
O novo modelo institucional observado por Kerr resulta da combinação de movimentos importantes havidos no período posterior à Segunda Grande Guerra, que transformam o panorama do ensino superior naquele País, e mais adiante, também em outras paragens. Um deles é o incremento expressivo do acesso, facilitado nos Estados Unidos pela legislação de estímulo aos veteranos de guerra. Um outro movimento, viabilizado por investimentos públicos expressivos, é a crença arraigada de que a ciência é a propulsora do desenvolvimento. Essa convicção leva à consolidação da dominância do modelo de “universidade de pesquisa” importado da Alemanha, onde havia sido gestado em fins do século 19.
As três palestras de Kerr foram fusionadas e publicadas no livro Os Usos da Universidade. Sua ampla recepção ensejou cinco edições em inglês e diversas traduções, inclusive ao português. Em acréscimos feitos nas edições mais recentes, Kerr expressa preocupação com decorrências indesejadas das mutações que ensejaram a nova variante por ele identificada. Entre elas estão a sedução do corpo docente por recursos e prestígio, a menor atenção para o ensino de graduação e a perda de coerência institucional.
A esses questionamentos na própria academia se juntam novas expectativas dos demais segmentos da sociedade – governo, imprensa, meio empresarial, organizações da sociedade civil organizada e meios de comunicação, assim como da opinião pública em geral. O efeito, que se espraia por outras plagas, inclusive o Brasil, é expressivo. Passa a ser vocalizada, por vezes de forma estridente, a indagação sobre quais as “contribuições efetivas” da universidade para a sociedade ampla, mais além da produção de conhecimentos.
Ajustes importantes passam a ser priorizados por universidades, como resposta estratégica adaptativa. Nesse esforço, surgem no meio acadêmico novas variantes da universidade, cada qual com um qualificativo atraente: universidade inovadora, universidade empreendedora, universidade capitânia (flagship university), universidade engajada, universidade cívica e mais.
Em busca de se reposicionar no imaginário coletivo, a fim de manter e ampliar a sua relevância social, a USP, que se enquadra em várias dimensões da multiversidade, apresenta-se cada vez mais como uma universidade de impacto. A compreensão do que é essa novíssima variante merece um olhar multifocal atualizado.