Dialogando sobre inovação

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), ambas da USP

 03/07/2023 - Publicado há 10 meses

É gratificante, por via de regra, receber um retorno qualificado sobre textos acadêmicos que produzimos. Foi com esse ânimo que li o artigo O papel da inovação no autoentendimento da USP, publicado no Jornal da USP pelo professor Marcos Barbosa de Oliveira, colega do Instituto de Estudos Avançados, onde participa do Grupo de Pesquisa “Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia”.

Em síntese, o artigo aponta três omissões no texto Missão inovar: um ensaio sobre a inovação na construção do futuro da Universidade, com o qual contribuo à relevante obra coletiva USP: novos tempos, novos olhares, agora disponível também no Portal de Livros Abertos da USP. São elas:

a) A falta de menção ao famoso relatório de Vannevar Bush, intitulado Science: the endless frontier;
b) A falta de menção a Christopher Freeman, cujo livro The Economics of Industrial Innovation “tornou-se a Bíblia do movimento empenhado no estabelecimento da produção de inovações como a função primordial da pesquisa científica”; e
c) A ausência de tratamento dos “resultados do movimento pró-inovação no Brasil, que deixam muito a desejar”, que é a omissão mais importante, na leitura do professor Marcos.

Os influentes textos de Bush e Freeman certamente merecem descrição extensa em qualquer exposição didática sobre a história contemporânea da inovação. Faço menção circunstanciada às contribuições seminais desses autores nas numerosas aulas e palestras sobre inovação que venho fazendo ao longo de anos. Todavia, o texto Missão Inovar não pretende ser propedêutico. Como indicado no subtítulo e justificado no item 1 (O lugar de fala) trata-se, isto sim, de um ensaio, ou seja, “uma obra de reflexão que versa sobre determinado tema, sem que o autor pretenda esgotá-lo, exposta de maneira pessoal ou mesmo subjetiva” (acepção desse gênero literário segundo a onipresente Wikipédia).

Estava presente na escrita do ensaio a intenção de prover subsídios capazes de instaurar uma compreensão mais acurada do fenômeno da inovação por parte da comunidade acadêmica, em especial a uspiana. Nesse sentido, o texto apresenta argumentos que contestam crenças equivocadas estabelecidas. Tais crenças desconsideram a complexidade da inovação e, por decorrência, perturbam o seu florescimento, dificultam o aproveitamento adequado dessa ideia-força e, por vezes, debilitam a capacidade de identificar tempestivamente os necessários cuidados mitigadores de consequências indesejáveis. Apresentam-se à sequência algumas das questões tratadas:

1) A história da inovação não começa com Schumpeter nos anos 1930-40, como é habitualmente propagado. Pelo contrário, no mundo ocidental a ideia da inovação tem raízes profundas no passado distante, que se deve conhecer.
2) Nem sempre a inovação era percebida, como é hoje, como sendo benéfica e, por conseguinte, desejável. Pelo contrário, por muitos séculos ela carregava o anátema de heresia secular, correndo os inovadores risco de punição.
3) A origem da valoração positiva da inovação não é a busca de maximização de lucros por parte de empresas com fins econômicos. Pelo contrário, a transformação da inovação de vício em virtude começa com a proposição da ‘inovação social’ pelos pensadores do socialismo utópico, já no primeiro quartel do século 19.
4) É factualmente incorreta a sabedoria convencional que estigmatiza a universidade como sendo uma instituição “enferrujada”. Pelo contrário, ela tem sido capaz de inovar radicalmente, a ponto de se reinventar, como evidenciam as chamadas “revoluções acadêmicas”.

Outra intenção ao elaborar o ensaio era aprofundar o modelo em ascensão da “inovação orientada por missões”, para aproximá-lo da comunidade acadêmica e, assim, contribuir para o desejável aumento do engajamento da universidade em grandes causas assumidas pela sociedade. A limitação da extensão do texto levou naturalmente a uma situação em que modelos de inovação anteriores puderam ser apenas aludidos.

É o caso da crítica ao modelo linear de inovação, derivado da concepção exposta por V. Bush (vide página 17 do texto Missão Inovar): “Isso significa que o atual ciclo tecnológico não é evento que decorre linearmente do conhecimento científico”. Também é referido o modelo sistêmico de inovação preconizado por C. Freeman (vide página 11): “modelos de cooperação interinstitucional (e.g., Triângulo de Sábato e Hélice Tríplice), sistema de inovação (nas dimensões nacional, regional, local e setorial) e ecossistema (de inovação e de empreendedorismo em seus vários matizes)”. A propósito da menção ao Triângulo de Sábato, é sempre oportuno lembrar que a proposição de modelos para maior integração entre o mundo acadêmico, o meio empresarial e o estamento governamental tem origem na América Latina.

O terceiro reparo feito é a omissão à análise dos resultados até agora alcançados pelo movimento em prol da inovação, que adentra o espaço público em 2001, pela realização da 2ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. O tema é evidentemente de suma importância, mas o seu tratamento adequado foge completamente ao escopo do ensaio. De qualquer forma, é extensa a literatura disponível sobre essa temática, incluindo artigos do próprio professor Marcos.

Oxalá o presente diálogo nas páginas virtuais do Jornal da USP estimule mais leitores a nele se engajar, gerando espaços de interlocução e interação capazes de refinar o “autoentendimento da USP”.

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