A importância do convívio com pessoas diferentes de nós

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 21/03/2023 - Publicado há 1 ano

Na sequência do artigo enviado no mês anterior, penso que seja fundamental explorar a ideia sobre como educar crianças para que não sejam racistas. Quero ampliar a reflexão para pensarmos em como educar uma sociedade para que não seja racista, LGBTQIA+fóbica, xenófoba, etarista, gordofóbica, capacitista, machista e misógina, ou sobre como convivermos, respeitosamente, com pessoas que são diferentes de nós por seus corpos ou identidades sociais.

É muito comum, na sociedade brasileira, moldada pela ideia de que não praticamos qualquer forma de discriminação, rejeitar a mera insinuação de que há discriminações e opressões com base na identidade social, e que essas violências são praticadas pelas instituições e por indivíduos, cotidianamente. Qualquer apontamento de que haja racismo, por exemplo, ou que houve alguma forma de discriminação por gênero, é prontamente descartada. E quem fez a “denúncia” da discriminação fica com o ônus moral e, às vezes, penal por tê-la feito. Essa pessoa passa a ser lida como alguém que traz a desarmonia a uma sociedade “reconhecidamente” avessa ao ódio.

A ideia de que a sociedade brasileira é naturalmente harmoniosa parece “parte” do DNA dos brasileiros. Mas isso é incompatível com a história da violência colonial contra os povos originários, pelo tráfico e pela escravização, pela destruição do meio ambiente. O Brasil é campeão nos rankings de feminicídio, morte de pessoas negras, trans, travestis, homossexuais, pelo desrespeito sistemático contra pessoas idosas, contra crianças e ganha em se aprimorar nas práticas de genocídio dos povos indígenas. Não há como associar essas práticas com qualquer possibilidade de harmonia social.

Hoje ganhamos a ajuda da neurociência para nos ajudar a entender como isso opera. Cientistas dessa área têm demonstrado a força que há no convívio com quem é diferente de nós por suas identidades sociais para que nossos cérebros se “descolem” dos caminhos neuronais das representações estereotipadas que formamos e construam novas formas de responder positivamente a pessoas dos grupos que são socialmente estigmatizados. É como dizer que nosso cérebro aprendeu, ao longo de toda uma vida (e isso obviamente começa na infância, no convívio familiar, nas escolas) que somos pessoas boas, temos ódio à discriminação, não somos racistas, machistas, homofóbicos, capacitistas etc. Mas aprendeu também, no mesmo convívio social e familiar que, por exemplo, pessoas negras são inferiores, pessoas LGBTQIA+ são anormais, pessoas que não portam a chamada “beleza grega” em seus corpos são monstros disformes. E, para piorar, nossas barreiras sociais não estimulam o convívio com quem é diferente sem que isso se dê em contextos que envolvam alguma forma de subalternidade.

Isso tudo é um prato cheio para que nosso cérebro entenda que: somos pessoas maravilhosas e não discriminamos ninguém; convivemos bem com todas as pessoas da chamada “diversidade”, desde que elas estejam em seus lugares naturais, e está tudo certo. Aí, quando alguém diz que: “não é bem assim!”, imediatamente essa pessoa é entendida como uma ameaça. Uma ameaça não só à sociedade, mas também a nós mesmos em nossas percepções, convicções e estruturação de modos de pensar e sentir. Nosso cérebro irá percorrer o caminho mais curto em direção a entender que o correto é aquilo ao qual foi exposto ao longo de uma vida inteira e irá ignorar quem diga o contrário ou entender essa pessoa ou pessoas como ameaças, em alguns casos. Obviamente, estou simplificando muito uma ciência que nada tem de simples.

Construir modos de convívio nos quais todas as pessoas, independente de suas identidades sociais, possam ocupar lugares onde estejam ausentes, e nos desafiar a aprender a conviver com elas nesses espaços, é parte desse processo de educação e transformação social.

As políticas afirmativas têm desempenhado um papel importante para que isso ocorra. Eu gosto de dizer que elas contribuem não só com a justiça social, mas, também, contribuem para que tenhamos a oportunidade de nos tornarmos pessoas melhores permitindo o convívio com quem é diferente de nós.

Em resumo, não há como realizar a educação de crianças e da sociedade para que não sejam discriminatórios, racistas, LGBTQIA+fóbica, xenófobas, etaristas, gordofóbicas, capacitistas, machistas ou misóginas sem oferecer a nós mesmos oportunidades de convívio não baseadas em estereótipos sobre elas. Essa é a única forma que temos para construir afetos positivos em relação a pessoas desses grupos. E, ao construir afetos positivos, desenvolver empatia e, aí sim, lutarmos juntas e juntos para que estrutura social que as violenta, cotidianamente, deixe de existir.

Parece piegas dizer que tudo comece com convívio e estima, mas é um fato. Um convívio que nos ensine a estimar quem é diferente de nós, cultivado desde a infância, pode resultar em adultos que não permitam que pessoas dos grupos mencionados acima sejam tratadas como coisas descartáveis, monstros, objetos ou ameaças. E, obviamente, temos que somar à prática do convívio e o cultivo da estima social com o ensino sobre como e por que nossa sociedade tem sido (e seguir sendo) estruturada pela violência.

Mudar isso tudo é uma tarefa cotidiana. Uma lição a ser praticada no dia a dia e em todas as situações. E isso começa nos primeiros dias de vida quando nossos cérebros recebem os estímulos que começam a nos moldar como seres sociais.

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