Esperanças para 2023

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 24/02/2023 - Publicado há 1 ano

Um ano novo começou com muitas esperanças de que retomemos as práticas de justiça social, inclusão e democracia. Em meio a reflexões e promessas para um ano que se inicia, recordei-me de um momento simbólico. Em um determinado dia, uma mulher branca (que se autodefinia dessa forma), de classe média, me fez uma pergunta que jamais tinha ouvido. Perguntou, com a honestidade de quem é genuína, como educar seus filhos para que não fossem racistas.

Uma pergunta simples e, ao mesmo tempo, enormemente complexa. Se recorremos às teorias, epistemologias, metodologias, pedagogias, cada uma poderá oferecer um caminho a ser seguido para a formação de pessoas não racistas. Mas a primeira coisa que me ocorreu ao ouvir a pergunta foi: “Nossa, que pessoa maravilhosa!”.

O que me encantou, vindo de uma mulher branca bem-posicionada socialmente, foi que ela não partiu do pressuposto de que, não sendo racista (poderia presumir que não o fosse e pronto), certamente não criaria filhos racistas. Ela não pressupôs que sua família, a escola onde seus filhos estudariam ou os ambientes que frequentariam fossem suficientes para formá-los como pessoas não racistas. Ao contrário, ela indagou a uma pessoa negra, mulher preta, o que ela poderia aprender, como ela deveria agir, o que poderia fazer. Isso não é pouca coisa e não se escuta todo dia.

Quando discutimos a questão da branquitude ou os privilégios para a brancura e, também, falamos sobre a identidade nacional brasileira e a questão da democracia racial, o que se deduz é que parte do privilégio por ser branco em uma sociedade hierarquicamente marcada, na qual as pessoas de pele escura estão na base e as de pele clara são distribuídas nas posições superiores, é que quem é branco não precisa se preocupar com esses temas.

É parte dos privilégios que são destinados à brancura o poder dizer o mundo como se a perspectiva hegemônica fosse sinônimo da verdade e a única verdade possível e passível de ser aceita. Assim, dizer que não há racismo, que não há conflitos associados à raça, cor, etnia, que o Brasil desconhece essa forma de violência ou, se ela existe, é totalmente ímpar e não traduz o modo de ser dos brasileiros é o discurso mais comum é mais frequente a partir da branquitude.

Qualquer pessoa branca tem o privilégio dado por nascimento, no Brasil, de poder negar o racismo e o caracterizar como “mimimi” de pessoas lidas (segundo as imagens de controle de Patricia Hill Collins) como raivosas, com enorme baixa-estima, não esforçadas, sem mérito.

Por isso, aquela mãe saiu da zona de conforto na qual poderia estar. Muitas pessoas poderão dizer que ela não fez mais do que a obrigação que todos deveriam ter em relação ao racismo. Mas, infelizmente, sabemos que isso não é comum.

A resposta à pergunta feita por ela é, de fato, complicada. Recordei-me de tantas referências fundamentais: autoras e autores ocupadas e ocupados em discutir a formação de personalidades autoritárias, a educação antirracista, letramento racial, formação para a diversidade e para os direitos humanos, a estruturação das sociedades racistas, sexistas, homofóbicas, xenófobas e patriarcais. São enormes as possibilidades de análises que se complementam em respostas, sugestões e ensinamentos essenciais para quem quer compreender como opera o racismo e como podemos evitar que prospere, indefinidamente.

A convergência entre todas as explicações é que o marco civilizatório que orienta as práticas em nossa sociedade atual nos ensina muito mais a discriminar do que a valorizar a diversidade, a equidade e os direitos humanos. Somos ensinados, cotidianamente, a sermos insensíveis à dor do outro.

Se fôssemos minimamente sensíveis à dor de outras pessoas e as considerássemos como seres que têm a mesma dignidade que nós, certamente não nos conformaríamos com as violências e violações que ocorrem, dia a dia, no Brasil. São crianças nas ruas, passando fome, genocídios de indígenas e de jovens negros, violências nas comunidades periféricas, pessoas espancadas e mortas pela violência policial, tiros que interrompem a vida de crianças nas comunidades, pais e mães sem condições de cuidar de seus filhos em razão do desemprego, idosos abandonados à própria sorte, pessoas escravizadas ao longo de toda uma vida, jovens sem perspectivas, crianças sem infância, adultos e idosos sem dignidade. Essa é a realidade das pessoas racializadas no Brasil.

Depredação, modelo predatório que desconsidera a vida e define os corpos que serão abjetos, inúteis, descartáveis. Se isso não nos afeta até os ossos é porque naturalizamos todos esses fatos como sendo consequências nefastas de um modo de vida que não foi criado por nós e, por isso, não nos sentimos responsáveis pelo que ocorre com os outros.

Não posso resumir, aqui, a resposta que dei à mãe zelosa. Mas quero ampliar as minhas esperanças em que esse tipo de pergunta se multiplicará. Tenho certeza de que filhos e filhas de mães, pais, famílias que se fazem essa pergunta não permitirão que as injustiças e o racismo prosperem. Isso é um ponto de partida para o ano de 2023 tão promissor após um período de enormes incertezas.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.