Volta ET! Volta!

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 16/12/2022 - Publicado há 2 anos

O filme E.T. O Extraterrestre foi colocado na telona por Steven Spielberg por meio de uma história escrita por Melissa Mathison. Foi a maior bilheteria de todos os tempos por 11 anos. O enredo trata de um grupo de botânicos extraterrestres que vem para o nosso planeta para “fazer shopping” de nossas plantas. Assustados pelo aparecimento de agentes do governo americano, fogem e deixam um dos pesquisadores na Terra. Ele é encontrado por uma criança (Elliot) que o mantém escondido dos adultos. Ocorre um fenômeno incrível, uma conexão psíquica onde tudo o que o extraterrestre faz, afeta Elliot. Por exemplo, quando o ET fica alterado por ter consumido bebida alcoólica, Elliot fica embriagado.

Bom, com a sua habilidade o ET aprende a linguagem humana e consegue se comunicar com seus amigos terrestres e podemos dizer que o relacionamento se estabelece. Ele também aprende a usar a tecnologia dos terráqueos para se comunicar com sua equipe. Isso mesmo, usou nossa tecnologia!

Dois estranhos que conseguem conviver num relacionamento amigável e colaborativo! Ingênuo e puro como deveria ser. Melissa Mathison escancarou a solução de um problema que temos muita dificuldade de resolver: a comunicação viabilizando o relacionamento a partir do comportamento das pessoas. Por sua vez, a tecnologia tem evoluído de forma incrível viabilizando, por exemplo, por meio de um gadget, a tradução de várias línguas e, com isso, podemos nos comunicar. A comunicação no sentido de transmitir algo, pela linguagem, pode ser a parte menos difícil desse conjunto complexo que permite a convivência.

A tecnologia tem proporcionado inúmeros mecanismos que podem aperfeiçoar a vida humana, proporcionar mais eficiência na comunicação e, consequentemente, no relacionamento. Certamente o WhatsApp é um dos campeões, pois mudou a rotina de milhões de pessoas facilitando e aproximando-as, nas relações pessoais e profissionais, melhorando a vida das pessoas. Mandar fotos, documentos, som de forma simplificada valorizando a rapidez e eliminando distâncias são algumas das possibilidades. Isso tudo tem um efeito, inclusive, de bem-estar, de proximidade.

Entretanto, surgem situações que merecem alerta. Meurer e Costa publicaram uma pesquisa sobre Cyberloafing, comportamento que se caracteriza como “uso da web para fins pessoais voltados à distração”. Estavam interessados no uso da web em salas de aula, “…onde o cyberloafing firma seus preceitos no impulso pela distração e pela busca por formas de manifestação do bem-estar social” (Kim & Byrne, 2011). A pesquisa é motivada pelo fato de que a falta de atenção durante as aulas afeta negativamente a aprendizagem dos estudantes e eles (alunos) reconhecem isso. Afinal, as mídias digitais são utilizadas para “…satisfazer as necessidades sociais de cada pessoa, escapar de situações estressoras, negativas e pouco engajadoras vivenciadas na vida real, sendo que esse enfoque apresenta-se mais aderente ao uso excessivo e pessoal da internet realizado pela maioria dos indivíduos” (Elhai et al., 2018). Recomendo a leitura plena do artigo.

Explorando o alerta da pesquisa, alguns comportamentos observados e distorções podem ser percebidas e merecem reflexões, ao menos, individualmente:

Whatsappitite, que é a obsessão de ter um smartphone na mão para sempre ter acesso e ser acessado. Deixar o smart na mesa do escritório na hora do almoço? Nem pensar! Teria um infarto. Poderia ter chamado essa doença de escravidão rediana.

Mercado consumidor: concorrência pura. Já viu a situação em que alguém escreveu uma coisa realmente importante e o grupo inteiro passa por cima e comenta uma postagem exótica ou hilária? Dois minutos depois tem tanta coisa que a atenção das pessoas se dispersa. Mágoas podem ser disseminadas por falta de atenção num mundo tão carente. Talvez seja mais fácil conhecer uma pessoa pelo WhatsApp do que convivendo com ela presencialmente.

Diálogo unilateral. “Não leio o que os outros postam.” Quando as pessoas perceberem isso deixarão de ler as postagens recebidas. Isso pode ser tudo, menos um mecanismo de diálogo e de aproximação das pessoas. Muitas vezes existe um abismo de objetivos entre quem posta e quem posta.

É proibido proibir. Quem não viveu a crise do pacto de não agressão por temas postados que afetariam as pessoas, podendo se referir a aspectos da política, religião, esportes, por exemplo? Sentir-se ofendido é complicado e se inicia uma discussão inútil e inglória. Não conheço um grupo que respeitou os milhares de pactos feitos para manter a sanidade entre amigos e/ou familiares eliminando as postagens consensualmente indesejadas. Nesse ambiente em que as pessoas só têm certezas e algumas temperadas por fake news, o diálogo fica insustentável e o relacionamento, estremecido.

Ups, já postei, mas é melhor deletar! Algo que passaria despercebido fica sendo fundamental descobrir por que alguém postou e deletou algo. Mais do que isso, interpretar as motivações para o arrependimento. A curiosidade com o irrelevante ou aquilo que jamais colocaríamos se pensássemos 30 segundos gera uso de tempo para algo inútil.

Reunião dupla. Você já participou de alguma reunião em que, num dado momento, duas ou mais pessoas deram risadas olhando para o smart e as demais se sentiram… excluídas de alguma coisa?

Pois é, essa prática é horrível para quem fica fora da verdadeira reunião.

A lista é bem grandinha, mas acredito que a comunidade leitora possa se identificar como vilão e/ou vítima de várias dessas caracterizações. Reconheço o poder e o benefício que o WhatsApp proporciona e pode proporcionar, mas é como o sal: sem ele o alimento não tem graça, mas em demasia pode ser mortal.

O que isto tem a ver com o ET? Tudo, pois quando a tecnologia nos proporciona avanço fica sendo fundamental entender como o ser humano usa essa tecnologia em benefício coletivo, equilibrando o ego e “humanizando os humanos”. Em alguns casos a tecnologia só nos faz mais rápidos, mordazes, cínicos e vingativos. Tem alternativa? Tem, e uma boa pista seria rever o filme e ver como podemos pensar em algo que não seja um benefício exclusivamente para nós mesmos. Como o ET fez.

Volta, ET! Precisamos aprender mais com você.


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