O Monitor Federal da Violência – os desafios de Ricardo Lewandowski

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 07/02/2024 - Publicado há 3 meses

O ano de 2017 começou com notícias alarmantes e estarrecedoras para os brasileiros. Logo no primeiro dia do ano, uma briga de facções no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, causou a morte de 56 pessoas. As cenas foram filmadas e invadiram as redes sociais e YouTube, com imagens de cabeças cortadas e celebração da barbárie. Nos dias seguintes, os conflitos se espalharam para os presídios de Roraima e do Rio Grande Norte, em massacres também filmados que provocaram a morte de mais 59 detentos.

O Brasil vivia uma profunda crise política. O presidente Michel Temer estava no cargo havia menos de um semestre, depois do impeachment de Dilma Rousseff. Como pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e jornalista, eu vinha acompanhando mais de perto a tensão nos presídios desde 2016, junto com minha colega Camila Nunes Dias. Sabíamos que as duas principais facções nacionais, Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), tinham rachado, situação que aumentou a temperatura no interior do sistema penitenciário e nas ruas das cidades de diversos Estados.

A violência ameaçava se espalhar pelo País. As facções tinham se nacionalizado. O crime já ultrapassava as fronteiras do continente e alavancava o mercado atacadista de drogas, a partir de contatos com países fornecedores como Paraguai, Bolívia e Colômbia. Havia mais capital, armas, conhecimento e capacidade de organização.

Desde seu processo de redemocratização, o Estado brasileiro tinha ficado para trás. Seus sucessivos presidentes vinham delegando o problema da segurança pública para os governadores. Não havia uma coordenação nacional. As polícias e os ministérios públicos estaduais permaneciam ilhados em suas realidades locais. O modelo militarizado de patrulhamento territorial ostensivo, de guerra ao crime e de aprisionamento em massa nos bairros pobres, vindo da ditadura militar e celebrado pelos populistas, permanecia influente, apesar de ineficaz e injusto.

As gangues de base prisional eram um dos efeitos colaterais desse modelo de gestão. Não havia um projeto alternativo e nacional para garantir a segurança nas cidades. O governo federal não era capaz sequer de organizar os dados de crime violento no País. Esses balanços vinham sendo publicados anualmente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entidade da sociedade civil que coletava as informações juntos aos Estados e levantava a bandeira da relevância desse trabalho. Os Anuários do FBSP, com os da segurança vindos de mais de 100 fontes de informação, eram voltados para a reflexão crítica das políticas públicas.

Faltava, ainda, um instrumento para medir o crime nacionalmente no calor dos acontecimentos. O Monitor da Violência – uma parceria entre o NEV-USP, o portal G1, do grupo Globo, e o FBSP – surgiu com esse propósito, em setembro de 2017, diante dos riscos reais da onda de violência depois dos massacres nos presídios. A ideia era conseguir, pelo menos, acompanhar mais de perto as variações dos dados nos Estados e no Brasil para cobrar uma ação estratégica dos governos e da União. Os jornalistas do G1, espalhados em redações presentes em todos os Estados brasileiros e no Distrito Federal, conseguiram colocar de pé, em poucos meses, algo que os sucessivos presidentes, desde 2012, quando foi criada a lei do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), patinavam para tirar do papel.

Os jornalistas do Monitor da Violência passaram a cobrar os dados das secretarias de segurança estaduais para produzir um quadro nacional com diversos indicadores do tema – dados de homicídios, latrocínios, feminicídios, letalidade policial, número de presos, entre outros temas, além de reportagens especiais premiadas.

Apesar de ser um projeto jornalístico, o Monitor produziu efeitos diretos na máquina pública. Os governos passaram a se habituar à prestação de contas e a entregar os números com mais agilidade – a produção dos dados para os Anuários do FBSP já tinha dado os caminhos das pedras. Os Estados que não entregassem as informações acabavam expondo a ineficiência de suas máquinas em comparação aos demais, o que gerava um esforço burocrático para dar conta da tarefa. As resistências vinham, muitas vezes, de Estados com problemas na segurança pública, casos da Bahia e de Goiás, que seguravam os dados da letalidade policial, por exemplo, enquanto suas corporações policiais se tornavam as mais violentas do País.

A publicação desses balanços no portal e nos jornais do grupo Globo tornava o sobe e desce dos homicídios uma questão politicamente sensível para os governos estaduais, que iniciaram uma saudável disputa para tomar medidas que evitassem o constrangimento de serem listados entre os Estados com mais homicídios do Brasil. O tema passou a ser debatido no calor dos acontecimentos. As possíveis causas das variações também entraram na pauta. A tirania das facções nos bairros, as disputas por mercados e territórios, a violência policial nas cidades, o descontrole do sistema penitenciário precisavam de medidas estratégicas, em vez das velhas ações atabalhoadas e improvisadas.

Em 2024, depois de mais de uma década de atraso, finalmente, o governo federal passou a fazer parte desse esforço de transparência. Os dados de violência de 2023 foram lançados no final de janeiro, pouco antes da saída do ministro Flavio Dino da pasta de Justiça e Segurança Pública. Conforme o balanço, que pode ser acompanhado na página oficial do Sinesp, os homicídios tiveram leve queda no Brasil, seguindo a tendência de redução que começou em 2018, depois da explosão de homicídios de 2017.

Pode parecer pouco, mas a iniciativa aponta para escolhas políticas relevantes. Caso o ministro Ricardo Lewandowski siga firme na missão, assume a responsabilidade da segurança pública com os governadores. Passa a integrar a rede que se exaspera mensalmente para conseguir reduzir os indicadores de crimes no Brasil, saindo do modo passivo. Passa a participar do debate das causas e das políticas necessárias, cuja eficiência passa a ser medida de acordo com os resultados objetivos que venham a alcançar.

Os partidos democráticos não podem mais fugir do desafio de assumir a responsabilidade com o tema da segurança, caso contrário, perdem o debate para o populismo rasteiro que ganha poder e dinheiro explorando o medo da população. O bolsonarismo mostrou os riscos implicados com a derrota.

Com os dados em mãos e com sua publicação periódica, é preciso redirecionar o debate e criar soluções de políticas públicas para aumentar a sensação de segurança e fortalecer as instituições democráticas que preservam o direito de viver em paz nas cidades. Os eixos do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) apontam caminhos certeiros. Vale destacar alguns eixos:

1 – Redução dos homicídios – Bairros com elevadas taxas, quase sempre, indicam a ação de indivíduos ou grupos armados que matam e subjugam as comunidades para ganhar dinheiro e poder. Reduzir as taxas de homicídios nos bairros que concentram esses casos é um compromisso político do Estado com a libertação das comunidades da influência dessas tiranias armadas.

2 – Reduzir a letalidade policial – as polícias do Brasil vêm somando mais de 6 mil homicídios anuais desde 2018, dado que as coloca em primeiro lugar no ranking entre as que mais matam no mundo. A letalidade vem acompanhada da corrupção. Os policiais que se sentem com liberdade para matar usam esse poder para enriquecer no crime. A elevada letalidade policial é sinônimo de descontrole das polícias e pode ser apontada como a semente do fortalecimento das milícias. As câmeras nos uniformes, se não são a panaceia, têm se revelado uma política promissora.

3 – Retomada do controle dos presídios – a medida é necessária para fragilizar o poder das facções brasileiras, que agem a partir do sistema penitenciário. O aprisionamento em massa gera custos elevados e funciona, muitas vezes, para empurrar os jovens para o crime e torná-los massa de manobra dos chefes das facções. É preciso repensar os crimes que exigem privação de liberdade, discutir o papel dos presídios, assim como soluções de penas alternativas. As ordens homicidas, quando vindas de dentro dos presídios, devem ser duramente punidas e não podem ser toleradas.

4 – Inteligência – ir além do patrulhamento territorial ostensivo e pensar em formas de reduzir o poder econômico das facções e milícias, cada vez mais influentes na política e na economia das cidades. A inteligência também funciona para reduzir crimes como roubo de celular, que apavora as populações das cidades. A criação do aplicativo que bloqueia celulares e contas de banco, por exemplo, caso funcione, pode ser mais efetiva para diminuir o valor da mercadoria roubada e a motivação dos ladrões. A identificação dos caminhos do dinheiro e das mercadorias roubadas também ajuda a reduzir os crimes via ação estratégica sobre esses mediadores.

Com a publicação dos dados de segurança e o fortalecimento da rede formada por representantes da União e dos Estados, as políticas públicas podem ser avaliadas de forma objetiva com base na variação das taxas. O Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), criado em 2018 para integrar os trabalhos das instituições dos estados e da federação, pode começar a funcionar de forma mais coordenada. Ainda falta muito a ser feito, mas os primeiros passos foram dados.

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