E continuam os festejos da modernidade

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 Publicado: 07/05/2024

No campo das artes, os primeiros anos da década de 2020 têm registrado um grande volume de reflexões sobre a modernidade e sobre o Modernismo. Por que continuamos a pensar sobre o moderno? Quais são as motivações? Será tão somente nosso amor pelas efemérides? Conversamos sobre esse apego às comemorações em A última pagodeira futurista: as efemérides e a arte contemporânea, texto publicado no Jornal da USP, em 2022. Lembra? Dê uma olhadela, só para conferir!

Mas, dois anos depois, no Brasil, ainda estamos impactados com as novas leituras sobre o “evento-fundador” da modernidade entre nós: a Semana de Arte Moderna de 1922. E, agora, lidamos com seus desdobramentos, quando os movimentos Pau-Brasil (1924) e Antropofágico (1928) convertem-se em temas de exposições, eventos e livros – a maioria dessas revisões problematiza a narrativa mítica e excludente do festival ocorrido no Teatro Municipal, em São Paulo, há mais de 100 anos. Aqui, proponho dar um giro por algumas produções atuais e observarmos qual é o tom das celebrações.

Diversas perspectivas surgem, por exemplo, a partir da investigação dedicada à vida e à obra de expoentes do Modernismo brasileiro, entre eles, Mário de Andrade – e, assim, me refiro ao desfile da campeã do Carnaval de 2024, Mocidade Alegre, em São Paulo, com o samba-enredo Brasileia Desvairada: a busca de Mário de Andrade por um país. O escritor paulista, autor dos livros Macunaíma e O turista aprendiz, coletou a diversidade dos “brasis”. O enredo evocou a viagem do modernista por diferentes cantos do País, sua busca pela cultura popular e, em especial, sua tentativa de forjar a identidade nacional. Na narrativa carnavalesca, a motivação que envolvia o público e os componentes da escola de samba era: conhecer o “Brasil profundo” pelas lentes do poeta.

O protagonismo do escritor também está na exposição Mário de Andrade: duas vidas, com curadoria de Regina Teixeira de Barros e exibida no Masp, até junho deste ano. A mostra apresenta um recorte com mais de 80 obras, entre desenhos, pinturas, esculturas e fotografias – material integrante do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A partir dessas obras mergulha-se nas preferências homoafetivas do escritor. A sexualidade de Mário de Andrade, assim como seu posicionamento racial, são temas polêmicos que hoje recebem mais atenção. Suas cartas, guardadas em sigilo por 50 anos, desde 1995, vêm rompendo com o silêncio da crítica pudica que sempre exigiu uma prova cabal das inclinações do poeta. Porém, uma carta enviada para Manuel Bandeira, em 1928, revelada em 2015, tornou-se crucial:

“Mas em que podia ajuntar em grandeza ou melhoria pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar um muito de exagero que há nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais. Pra você me defender dos outros, não adiantava nada pra mim, porque em toda a vida tem duas vidas, a social e a particular (…)”.

Tarsila do Amaral é outra personalidade colocada em evidência nas celebrações que envolvem o Modernismo, afinal, a artista é vista como sendo seu maior ícone. No teatro, o musical Tarsila, a brasileira renuncia ao rigor histórico para contar o percurso estético da pintora. Nessa trajetória, destacam-se a formação do Grupo dos Cinco (Tarsila, Anita, Menotti del Picchia, Mário e Oswald de Andrade), o casal Tarsiwald, a criação do Abaporu, a crise de 1929, a perda de sua fortuna, a descoberta da traição de Oswald com Pagu, a viagem à Moscou, sua fase ligada ao realismo social e o romance com Luís Martins, 24 anos mais jovem do que ela. Ao final do espetáculo, após as mortes de sua filha e neta, da ruptura com Luís e das mortes dos amigos Mário, Anita e Oswald, a artista conforta-se no kardecismo. Numa epifania, Tarsila renova sua convicção na arte como possibilidade de transcendência.

Entre os novos estudos e investigações, destacam-se ainda o reposicionamento de agentes históricos negligenciados, tais como, Lima Barreto e os irmãos Arthur e Timóteo da Costa – o escritor e os dois pintores afrodescendentes foram retirados do inconveniente título de “precursores do Modernismo” e interpretados a partir de seu ambiente sociocultural, motivações e repertório criativo. Diga-se, ainda, que outros contextos modernos que foram obliterados pelo mito de 1922 ganharam novas interpretações.

Assinala-se, então, o livro Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso, publicado em 2021, originalmente pela Cambridge University Press, porém, lançado em português, em 2022, pela Companhia das Letras. Segundo o autor, a edição brasileira é muito mais uma segunda edição revista e ampliada do que uma tradução da edição inglesa.

Com o arco temporal maior do que os famosos anos 1920 e narrativa centrada no Rio de Janeiro, Cardoso traça a modernidade através da formação das favelas, do Carnaval, da boemia e notadamente através das revistas, jornais e periódicos cariocas; o autor aborda a dimensão da sociabilidade carioca, a ilustração em revistas e jornais, os textos da imprensa e da literatura como parte da construção de uma modernidade não ligada à concepção hegemônica do Modernismo paulista.

Nesse ponto, convém dizer que as efemérides não se restringem à história da arte brancocêntrica brasileira. O reexame acontece em âmbito internacional, com uma série de exposições que repensam o papel das correntes modernistas, por exemplo, no que podemos chamar de “centro”, no caso dos anos de 1920, a cidade de Paris.

No escopo das artes, nessa revisão dos eventos modernos, surgem: a relação centro-periferia, a apropriação da arte negra, o primitivismo, a participação de mulheres nas vanguardas artísticas, entre outras pautas socioculturais. Todas essas pontuações, hoje, estão sendo recuperadas por pesquisadores interessados em questões que envolvem gênero, sexualidade, política e, especialmente, a essência vanguardista traduzida em interdisciplinaridade e esgarçamento das fronteiras entre as linguagens artísticas.

Conhecidos como “les années folles” ou “roaring twenties”, os anos de 1920, cheios de ousadias e experimentalismos, estão sendo colocados com ênfase nesse momento, ao menos em duas exposições, em Paris. A primeira delas é Le Paris de la Modernité (1905-1925), exibida no Petit Palais até abril de 2024. A exposição apresentava como contexto a Belle Époque aos anos 1920. Nesse período, a cidade atraía artistas de todo o mundo, transformando-se no centro cosmopolita de inovação e de influência cultural. O “amor ao negro” ou o negrismo representado pelo sucesso de Joséphine Baker, na Paris de 1925, está em documentos e registros fotográficos nessa mostra. Sobre esse tema já tratamos em A modernidade e o “amor ao negro”, aqui no Jornal da USP. De novo, dê uma olhada neste artigo. Vale a pena!

Voltando à exposição Le Paris de la Modernité: são cerca de 400 obras de diferentes artistas, entre eles, Robert Delaunay, Duchamp, Picasso, Léger, Modigliani e muitos outros. Porém, a perspectiva interdisciplinar enfatiza o papel de artistas mulheres na avant-gard, entre elas, Marie Laurencin, Sonia Delaunay, Jacqueline Marval, Marie Vassilieff e Tamara de Lempicka.

A mostra ainda traz objetos tais como roupas de Paul Poiret, Jeanne Lanvin, joias da Cartier, um avião do Museu do Ar e do Espaço de Le Bourget e até um carro emprestado do Museu Nacional do Automóvel de Mulhouse. Através da moda, do cinema, da fotografia, da pintura, da escultura, do desenho, mas também da dança, do design, da arquitetura e da indústria, exibem-se aspectos valorizados por uma nova vanguarda do pós-Primeira Guerra, composta de artistas, intelectuais, boêmios e gente vinda de todas as partes do mundo que desejava viver “a síntese das artes”.

A segunda exposição é Brancusi, exibida no Centre Pompidou até julho deste ano. Nela, 120 esculturas e cerca de 400 peças, entre fotografias, desenhos e filmes, mostram aspectos sobre o desenvolvimento criativo deste artista reconhecido por sua obra elegante e pelo uso, simultâneo, de técnicas simples e sofisticadas. O destaque da mostra está na reconstituição de seu ateliê. Brancusi chegou a Paris vindo da Romênia em 1904. Suas esculturas de “aparência africana” foram produzidas entre 1910 e 1920 – justamente quando ele integrou o círculo intelectual e social de Paris, com Erik Satie, Modigliani, Duchamp, Picasso, Apollinaire, Léger, entre outros. Na documentação angariada pela mostra, fotografias, convites, jornais e textos críticos mostram a estreita relação entre os artistas – merece destaque o registro que evidencia o contato próximo com nossos modernistas Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade.

Pelas ideias do grupo, é visível nas peças de Brancusi a busca estética que residia no apelo ao “primitivo”, isto é, tudo o que fosse da ordem do originário, do inconsciente, das emoções “brutas” e da simplicidade formal. Nesse processo, as fontes africanas e não ocidentais eram essenciais. Acrescente-se que o “primitivo” transformou-se em conceito amplo porque significava muitas coisas ao mesmo tempo: exotismo, arte negra, a linguagem virgem, ou ainda, a redução da arte àquilo que é basilar (e, aqui, o princípio da geometria que o cubismo repassou ao abstracionismo).

Existem muitos exemplos do uso do primitivismo na modernidade, entre eles, por exemplo, o Manifeste cannibale dans l’obscurité, escrito e musicado por Francis Picabia e lido por André Breton em espetáculo de 1920; as pesquisas cubistas de Picasso que absorveram as formas encontradas na estatuária e nas máscaras tribais da África e da Oceania, expostas no Musée d’Ethnographie du Trocadéro em Paris.

E ainda, os escritos do poeta franco-suíço Blaise Cendrars que, em 1921, lançou Anthologie nègre e dois anos depois, junto com Léger, encenou o espetáculo La création du monde, do Ballets Suédois, com cenário inspirado em máscaras africanas. Nesse espetáculo, Tarsila do Amaral auxiliou o mestre Léger; além disso, sua relação com Cendrars era bastante próxima.

E, de regresso ao Brasil, lembramos, então, da caravana modernista às cidades históricas, organizada por Mário de Andrade, na Semana Santa de 1924 que reuniu Oswald, Tarsila e Cendrars. Enfatiza-se uma volta às origens: é o “Tietê que corre para o interior”, no dizer de Mário de Andrade. Valoriza-se o “ingênuo” e o “regionalismo” que leva às origens, que “rompe com o sertanismo idealizado do passado”.

Temas e motivos plásticos negros e indígenas incorporam-se à nova estética pelo viés do primitivo – aquele vindo das vanguardas europeias. Reinterpreta-se o expressionismo, cubismo, dadá e o surrealismo, em termos de uma busca das raízes formadoras da nacionalidade. Não tarda e veremos mostras, publicações e outras manifestações dedicadas à expedição modernista.

De tudo aqui exposto, a rememoração dos personagens e eventos relacionados aos “anos loucos de 1920” – essa intensa produção de exposições, livros e investigações da qual pontuamos alguns exemplos – nos revela as exclusões dos festejos da modernidade, no Brasil ou na capital dos “anos loucos de 1920”, Paris.

Hoje, evocamos aqueles que não foram os convidados para a festa. A reflexão sobre o moderno pode nos dar respostas sobre nossa contemporaneidade e isso é algo importante porque desconstrói os cânones da História da Arte. Devemos, contudo, ter em mente que a modernidade de lá, apesar dos intercâmbios, não foi a mesma que a de cá. Porém, esse é outro ponto para nova discussão.

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