Diário de um câncer – De 0 a 100 km/h em quatro meses alucinantes – parte 2

Por Valéria Dias, jornalista e subeditora de Ciências do “Jornal da USP”. Em dezembro de 2023 foi diagnosticada com câncer ginecológico (sarcoma do estroma endometrial)

 27/05/2024 - Publicado há 2 meses
Valéria Dias - Foto: Arquivo pessoal

Capítulo 4

Após a minha chegada ao A. C. Camargo Cancer Center, a Ferrari do capítulo anterior continuou acelerando, enquanto eu ficava cada vez mais zonza. Quando cheguei ao hospital, em 26 de janeiro, imaginei que ficaria apenas alguns dias internada. Mas, por vários motivos, a internação foi além do que eu previa. Só recebi alta em 15 de fevereiro. Durante todo esse período, tomei muitas medicações, inclusive morfina quase que diariamente, porque sentia muita dor.

Eu já havia passado por uma internação em 2009. Fui de férias para o Amazonas e fiquei hospedada em um hotel de selva, além de ficar uns dias em Manaus, conhecendo a capital e tomando muito tacacá. Cerca de uma semana após meu retorno a São Paulo, comecei a sentir uns sintomas estranhos, uma tremedeira, uns calafrios, uma febre esquisita, um mal-estar. 

Fui diagnosticada com malária e fiquei dez dias internada no Hospital Emílio Ribas, na capital. É uma doença que se cura usando os medicamentos corretos (primaquina/cloroquina), além de ser necessário fazer um acompanhamento de seis meses após a alta hospitalar para verificar se a doença não irá voltar. Bem tranquilo quando comparado a dar entrada no hospital com um bexigoma que apareceu porque há um tumor cancerígeno crescendo em seu ventre e que comprime a sua bexiga.

Quando decidi mudar meu tratamento para o A. C. Camargo Cancer Center, providenciei uma pasta cheia de documentos ligados ao diagnóstico de câncer, assim a equipe médica poderia ficar a par da doença. Eles decidiram me manter internada, para fazer vários exames, estudar o meu caso e acompanhar a evolução da minha saúde.

Já na primeira semana, os médicos solicitaram ao convênio autorização para quimioterapia, além da realização de um PET-CT, exame capaz de mostrar se há metástases tumorais em todo o corpo. Foi esse exame, realizado no dia 5 de fevereiro, que mostrou a existência de metástase óssea e pulmonar. Nesse mesmo dia, pela primeira vez na vida, eu fui para a sala de cirurgia implantar um cateter venoso chamado Port-a-Cath. Seria por ele que eu receberia a quimioterapia. Ele é formado por duas partes: uma fica dentro do corpo, sob a pele, e tem acesso direto à veia cava superior. Essa parte foi implantada durante a cirurgia. A segunda parte é externa, e é acoplada cada vez que eu vou fazer uma sessão de quimioterapia. É a chamada punção de cateter.

Nessa primeira semana conversei com vários oncologistas. Inicialmente, o tumor havia sido identificado como carcinossarcoma, de acordo com as análises imuno-histoquímicas realizadas no Hospital Universitário da USP e no Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp). Em ambas as análises, porém, também era sugerido sarcoma do estroma endometrial ou pecoma uterino, mas, num primeiro momento, o caso foi considerado como carcinossarcoma.

No dia seguinte, 6 de fevereiro, eu receberia a minha primeira quimioterapia: carboplatina + paclitaxel. Logo nos primeiros segundos após a infusão dos medicamentos, comecei a ter uma forte reação alérgica. Senti meu corpo inteiro queimando, uma sensação horrível, o coração acelerou forte. Achei que fosse morrer. Foi quando gritei: “Tira essa coisa de mim!!!”. Vomitei bastante depois. 

A equipe de enfermagem rapidamente retirou a medicação do cateter e um médico veio conversar comigo. Ele contou que algumas pessoas têm reação alérgica àquele protocolo, e eu era uma delas. Obviamente a infusão foi cancelada, o que me deixou muito preocupada, pensando se havia um protocolo adequado para o tipo de tumor que me afetava sem que eu tivesse uma reação alérgica tão horrível.

No dia seguinte, uma médica veio conversar comigo para dizer que eles haviam recebido uma nova imuno-histoquímica que apontava o câncer como sendo sarcoma do estroma endometrial. O protocolo, para esses casos, é outro: doxorrubicina + ifosfamida. Mas eu ainda aguardaria alguns dias antes de iniciar a infusão com os novos quimioterápicos. Em 9 de fevereiro, fiz uma nova biópsia, mas, desta vez, ela foi feita no centro cirúrgico.

Curtindo os blocos carnavalescos: “Tarada ni você, doxorrubicina” e “Eu já escuto os teus sinais, ifosfamida”

A tão aguardada quimioterapia veio em pleno sábado de Carnaval de 2024. Eu nunca fui de pular em bailes ou blocos e nunca fui pessoalmente aos desfiles das escolas de samba, mas sempre gostei de assistir pela TV. Quando os blocos de rua começaram a surgir em São Paulo, há cerca de dez anos, sempre tive vontade de ir em alguns, mas nunca havia ido.

Isso mudou em 2023, quando eu prometi que iria cair na folia. Os blocos escolhidos foram: Tarado Ni Você, que homenageia Caetano Veloso, e Bicho Maluco Beleza, do Alceu Valença. Havia ainda a possibilidade de ir em outros, como o Ritalina, que homenageia Rita Lee, e, para fechar o carnaval, o bloco da Daniela Mercury. Quatro blocos era um bom número, para começar. Acabei indo apenas nos dois primeiros. E tive de ir sozinha, pois nenhuma amiga ou amigo estava disponível. A verdade é que eu me diverti horrores, a começar pelo metrô: muita gente fantasiada, muito glitter, muita alegria, uma fantasia mais criativa que a outra. Eu e minha fantasia de diaba adoramos a experiência.

Eu costumo brincar com algumas pessoas e dizer que o meu sonho é fazer, num único carnaval, o circuito: bloquinho SP → assistir ao desfile no Anhembi → bloquinho Rio de Janeiro → assistir ao desfile na Marquês de Sapucaí → Salvador → Recife → Olinda. Organizando direitinho e comprando as passagens aéreas e reservando os hotéis com antecedência, quem sabe um dia, não?

Pois foi em pleno sábado de Carnaval de 2024 que eu recebi, de fato, o primeiro ciclo de quimioterapia, enquanto assistia na TV aos foliões brincando em todo o Brasil. Senti um misto de alegria e tristeza. Alegria porque a quimioterapia era mais que bem-vinda e aguardada. E tristeza porque se eu fosse escolher, estaria junto aos foliões, lógico. Mas talvez a vida tenha me pregado essa peça para que eu possa curtir os próximos carnavais com saúde e tranquilidade.

De acordo com o meu oncologista, seriam realizados seis ciclos de quimioterapia no total, com aplicações a cada 21 dias.

Minha primeira quimio foi aplicada durante cinco dias, de 10 a 14 de fevereiro.
O protocolo é bem complexo e cada aplicação leva pelo menos seis horas. Inclui dois quimioterápicos, além de uma série de outras medicações e soro. A infusão é feita diretamente pelo cateter Port-a-Cath. Segundo o meu oncologista, esse protocolo é um dos mais fortes que existem e acaba por causar reações intensas, como enjoo, mucosite (uma inflamação das mucosas, como boca e esôfago), cansaço, além da queda dos pelos do corpo.

Na infusão, primeiramente eu recebo medicamentos para enjoo, em geral um comprimido de akinzeo e, na sequência, via cateter, dexametasona (na quimioterapia ela é usada pra prevenir náuseas e vômitos). Todas as outras medicações também são aplicadas via Port-a-Cath.

A doxorrubicina é o primeiro quimioterápico e vem na sequência. Ela é conhecida como “quimioterapia vermelha”, por causa da coloração avermelhada dos componentes da fórmula. De modo bastante equivocado, algumas pessoas dizem que ela é mais forte (e mais danosa) que as outras químios e, por isso, é vermelha. Porém, todos os quimioterápicos agridem o corpo de alguma forma e cada paciente pode apresentar reações mais ou menos intensas, sendo que essas reações não têm nada a ver com a cor do medicamento.

Depois da doxorrubicina, eu recebo mesna. Ele é usado para prevenir toxicidade da região urológica, incluindo cistite hemorrágica, micro-hematúria e macro-hematúria, em pacientes oncológicos tratados com ifosfamida e ciclofosfamida em doses consideradas tóxicas.

Após a mesna, eu recebo a ifosfamida, o segundo quimioterápico.

Depois dela, é aplicado um litro de soro.

Quando o soro acaba, eu recebo outra dose de mesna, mas ela somente pode ser aplicada depois de quatro horas da infusão de ifosfamida.

Por fim, mais um litro de soro.

Esse primeiro protocolo foi aplicado durante cinco dias consecutivos. Recebi alta em 15 de fevereiro.

Os dias que se seguiram estão entre os piores da minha vida. Fui acometida por uma mucosite extremamente forte que atacou o meu esôfago. Qualquer alimento descia pela minha garganta rasgando, causando dores intensas. A consequência disso é que eu não conseguia comer nada sólido. Então eu me alimentava de frutas, como melão e melancia, além de tomar líquidos, sucos e sorvete.

Meu corpo ficou muito debilitado, e eu sentia um cansaço extremo. Praticamente ficava o dia inteiro deitada na cama, sem vontade de fazer nada. Também sentia um grande mal-estar. Não tinha energia para absolutamente nada.

Quando recordava que teria mais cinco ciclos pela frente, eu achava que não conseguiria resistir. Era sofrimento demais.

Vale lembrar que eu estava usando a sonda urinária, que foi colocada para evitar um novo episódio de bixigoma, visto que o tumor crescia e comprimia o meu ventre. Ela somente foi retirada um mês depois, em março. A sonda causava um incômodo muito grande. Além de ser horrível dormir com ela.

Uma das recomendações a quem faz quimioterapia é o acompanhamento constante da temperatura corporal. A qualquer sinal de febre, mesmo que muito baixa, é preciso ir ao hospital, pois o paciente corre o risco de estar com neutropenia (redução drástica dos neutrófilos do sangue), o que pode deixar a pessoa suscetível a infecções graves. Também é preciso estar atento a vômitos, dor abdominal, sensação de desmaio e palpitações.

A sonda estava me incomodando demais e eu comecei a pensar que estava com infecção urinária. No dia 20 de fevereiro, ao medir minha temperatura, percebi uma febre bem baixa. Corri para o hospital. Fiz alguns exames e, após sair o resultado, fui informada que precisaria ficar internada, pois estava com um alto grau de neutropenia. Fiquei internada de 20 a 29 de fevereiro e precisei tomar antibiótico na veia durante sete dias.

Por causa dessa forte reação ao primeiro ciclo de quimioterapia, meu oncologista decidiu ajustar a medicação: nos próximos ciclos eu receberia as infusões durante quatro e não cinco dias, além de diminuir um pouco a dose dos quimioterápicos. A intenção era usar a melhor dose possível para combater o tumor, mas sem afetar tanto a minha saúde e não me deixar tão debilitada e vulnerável como eu fiquei após esse primeiro ciclo.

Foi durante essa internação que o meu cabelo começou a cair. Mas essa história é longa e merece um texto exclusivo. Isso eu vou contar no próximo artigo.

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