Os conflitos civis na África

Por Pedro Feliú, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP

 16/04/2024 - Publicado há 3 meses

Aproximadamente 40% dos países do continente africano vivenciaram conflitos civis nos últimos 50 anos. A primeira leva veio logo após a independência, entre os anos 60 e 70 do século passado. Esses conflitos foram marcados pela disputa entre grupos armados, vencedores na guerra de libertação, na organização do novo Estado — e Angola seria um exemplo.

A segunda leva de conflitos ocorreu na Guerra Fria, tendo como característica principal a influência das grandes potências, EUA e URSS, apoiando, financiando grupos rivais e tolerando violentos governos. O ex-Zaire (atual República Democrática do Congo – RDC) de Mobutu Seko, a Libéria de Samuel Doe e a Etiópia de Mengistu Mariam são exemplos de governos violentos, cuja legitimidade era contestada internamente, mas apoiados pelas potências no contexto da Guerra Fria.

A terceira leva de conflitos ocorre do pós Guerra-Fria até meados dos anos 2000, centrada na disputa sobre o controle dos recursos naturais. Os casos dos diamantes na Libéria e Serra Leoa e mineração na RDC são ilustrativos. Ao invés de estabelecer um aparato fiscal para sustentar e desenvolver o governo, capacitando-o a garantir a segurança, o que se observou em alguns países foi a falência do Estado. Incapaz de exercer suas funções básicas, a autoridade do Estado será mais facilmente contestada. Botsuana é um excelente exemplo contrário. Além de não vivenciar conflitos civis, o país possui uma democracia estável (apesar da dominação de um partido) e um Estado fiscalmente estruturado, com o controle de empresas estatais do importante setor de mineração.

A quarta leva de conflitos se desenrola até os dias atuais, sendo muito caracterizada pela violência de grupos não estatais, geralmente imbuídos de ideologias radicais. Os casos do Al Shabaab no Quênia, Boko Haram na Nigéria e M23 na RDC são alguns atores violentos não estatais atuantes na região.

Quais são os incentivos para grupos rebeldes engajarem a luta armada? A dependência do país à exportação de recursos naturais é um potencial causador do conflito, aumentando a perspectiva de ganho em uma ação rebelde armada. Apesar do fenômeno não ser exclusividade dos países africanos, o grau de dependência das economias no continente, comparado ao de outras regiões do globo, é significativamente maior. Alguns países da região também contam com as menores médias globais de renda per capita, incentivando os jovens sem oportunidades a ingressar em grupos armados. O desenvolvimento da democracia, ou sua ausência, afeta a probabilidade de conflito civil, uma vez que as disputas pelo controle do governo são pacificamente resolvidas na democracia.

Uma explicação fortemente rejeitada na literatura recente é a importância da diversidade étnica como combustível para as guerras civis. Ao contrário, a diversidade étnica é apontada como fator inibidor do conflito civil. É muito difícil organizar ou sustentar uma rebelião em sociedades pouco homogêneas. Os conflitos civis tendem a ser menos frequentes em sociedades divididas em muitos pequenos subgrupos étnicos ou religiosos. Os conflitos africanos tendem a assumir a forma de rebelião de subgrupos. Isso tem sido erroneamente interpretado como conflito induzido etnicamente. A depender do tamanho da população do país, a questão étnica terá maior ou menor propensão de ser instrumentalizada política e violentamente. Em países pequenos esse risco é maior. Vale ressaltar que o fator étnico possui maior relevância nos conflitos civis asiáticos quando comparado aos africanos.

Outro fator explicativo relevante é a influência externa nos conflitos civis. Instabilidades em países vizinhos tendem a se espalhar para além das fronteiras. O caso recente de Burquina Faso é emblemático. Antes considerada uma ilha de estabilidade, o país sofreu inesperadamente os efeitos negativos do conflito civil no Mali. Grupos insurgentes jihadistas que afirmam lealdade à al-Qaeda e Estado Islâmico cruzaram a fronteira e geraram milhões de refugiados e mortes em Burquina Faso. A insurgência do Boko Haran, originado na Nigéria, também afetou negativamente o Chade, Níger e Camarões. Também se destacam outros fatores externos, como o financiamento estrangeiro e o comércio internacional de armas. Ambos criam as condições necessárias para a escolha da luta armada.

É importante mencionar que a literatura, ao analisar séries temporais maiores de conflitos civis no mundo, conclui que não existe um Efeito África na maior propensão aos mesmos. Vale lembrar que o Brasil, por exemplo, teve a sua última guerra civil em 1932, 110 anos após a sua independência. Alguns jovens países africanos continuam estruturando o Estado Nacional, processo que outras regiões vivenciaram mais de um século antes. A capacidade do Estado ofertar bens públicos e a democratização são elementos domésticos incentivadores da estabilidade. No âmbito internacional, a segurança coletiva pode desempenhar papel crucial. A União Africana de Nações cada vez mais assume esse papel, aumentando nos últimos anos o número de tropas e operações de paz. A complexidade do fenômeno demanda ação nas duas frentes, interna e externa, urgindo à comunidade internacional atuação em ambas.

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