Em 2024, governo de SP assume compromisso com o erro e inicia desmonte do programa de câmeras nos uniformes de PMs

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 11/01/2024 - Publicado há 10 meses

Existe uma história recente de sucesso de política pública, que pode ser medida por meio de evidências: o uso das câmeras nos uniformes da polícia, que contribuíram para melhorar o resultado da ação dos policiais nas ruas, controlar a violência e corrupção e fortalecer a profissionalização do trabalho da corporação. Apesar de ser apontado como referência para políticas públicas em outros estados brasileiros e países, o programa deve ser interrompido pelo governador Tarcísio de Freitas. Os motivos, do ponto de vista republicano e democrático, ainda são racionalmente incompreensíveis.

O plano desenvolvido pela PM de São Paulo para as câmeras corporais tem uma história breve, mas arrebatadora. O programa começou a ser desenhado em 2019. Era um ano crítico para a Polícia Militar de São Paulo, que precisava lidar com o problema crônico ligado à violência de seu efetivo nas ruas. Desde 2014, a situação parecia fora de controle. Somente a PM matava em média 832 pessoas por ano. Boa parte delas eram crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos. Em 2017, 36% das vítimas tinham essa idade.

Esse descontrole da violência policial, como sempre acontece, descambava para a corrupção. No final de 2018, uma operação comandada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público paulista prendeu 54 PMs suspeitos de colaborarem com integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) no tráfico de drogas da zona sul da capital. O elevado poder financeiro da facção, com conexões internacionais no mercado de drogas, associado ao descontrole dos policiais, criava uma situação explosiva. As milícias no Rio de Janeiro eram um exemplo de até onde a desordem na corporação podia chegar.

Diante desse quadro, as instituições e a sociedade civil passaram a cobrar medidas para reverter a situação. Em maio de 2019, Ministério Público entrou com uma ação civil pública pedindo a condenação do governo de São Paulo por causa da elevada letalidade policial. A pressão iria aumentar em dezembro do mesmo ano, quando uma ação destrambelhada da Força Tática da PM em um baile funk na Favela Paraisópolis provocou a morte de nove jovens de 14 a 23 anos.

É nesse contexto que o então governador João Dória, que tinha sido eleito na onda bolsonarista com um discurso populista na segurança, percebeu a necessidade de mudar de rumo. O confronto do governador com o negacionismo e as ideias equivocadas do presidente já estavam em curso desde o início da pandemia, quando ambos bateram boca sobre o isolamento e a produção de vacinas. O embate também era necessário para melhorar a ação das polícias. São Paulo já tinha registrado um feito notável na segurança. Era um dos estados mais violentos do Brasil no final dos anos 1990. A partir dos anos 2000, testemunhou a redução em mais de 80% os homicídios. Apesar da queda, as mortes por intervenção policial seguiam em patamares elevados.

O então governador, com o comandante geral da PM, coronel Fernando Alencar, um dos oficiais mais respeitados e preparados da corporação, decidiram tomar uma série de iniciativas no sentido de profissionalizar a ação das polícias nas ruas, controlar seus excessos, injustiças e arbitrariedades. Existia uma solução na prateleira de políticas públicas bem-sucedidas. Uma série de estudos internacionais apontavam, com base em evidências, que o uso de câmeras nos uniformes apresentava bons resultados, principalmente em polícias dos Estados Unidos, também envolvidas em acusações de racismo e excesso e violência. A sociedade civil norte-americana tinha reagido em 2013, quando criou do movimento Black Lives Matters e pressionou os governos e cidades locais para mudar os procedimentos das polícias nas ruas. Em 2016, 47% das forças policiais já usavam as câmeras corporais, chegando a 80% nos grandes departamentos de polícia.

A implementação do programa em São Paulo, chamado de Olho Vivo, envolveu cuidado e articulação. O uso de câmeras já vinha sendo testado isoladamente na corporação, mas a tecnologia passou a ser ampliada com o apoio dos oficiais mais graduados. Respaldada pelo Comando Geral, a partir de 2020 e 2021, as câmeras corporais iriam fazer gravações ininterruptas e enviar o material para uma nuvem, solução que diminui o custo operacional da atividade. A tecnologia usada nos uniformes era de ponta, e as imagens, caso necessário, podiam ser monitorados por outras corporações e poderes, como Polícia Civil, Ministério Público, Defensoria e Justiça.

Junto com as câmeras nos uniformes, foi criada, em 2020, Comissões de Mitigação de Riscos, que eram acionadas nos batalhões em ocorrências que resultavam em mortes. Mesmo não tendo objetivos processuais, os esforços para analisar para a ação policial mostravam compromisso político com a redução do uso da força letal. A cultura do enfrentamento, uma praga herdada do passado e mantida nas tropas por estarem associada à coragem e bravura, produzem erros e injustiças incontáveis que afetam a imagem da polícia no estado e fortalecem autoridades informais e paralelas, como a das facções.

Os resultados das mudanças rapidamente apareceram. Até o final de 2022, 62 dos 135 batalhões da PM faziam parte do Olho Vivo. Os primeiros três batalhões adotaram as câmeras em agosto de 2020, número que foi crescendo gradualmente. Em 2020, os batalhões que integraram o programa tinham registrado 465 mortes, que caíram para 283 no ano seguinte e 114 dois anos depois. A queda de 76% ficou bem acima da redução dos batalhões sem câmera, que também responderam à iniciativa política de controlar a letalidade, registrando uma queda de 33%. Já o total de policiais mortos durante o serviço passaram de 18 em 2020 para 4 e 6 nos dois anos seguintes, as menores taxas já registradas na série histórica de mais de 20 anos.

Na Nota Técnica sobre o Programa feita com o Instituto Sou da Paz, o coronel Robson Cabanas Duque informou que, além de reduzir a letalidade e a morte de policiais, o programa ajuda na formação de provas, que ajudam a condenar criminosos pela gravação de imagem e som do local do crime em flagrante, além de aumentar o registro de ocorrências de violência doméstica. Caem as denúncias e reclamações contra policiais e a cultura de rua cede lugar às técnicas e práticas ensinadas em treinamento, descritas em procedimentos operacionais, aumentando a profissionalização dos policiais. O treinamento pode ser aprimorado, com o uso das imagens nas salas de aula e modernização do currículo das escolas de formação, entre outras vantagens.

Tamanhas eram as qualidades e o apoio de instituições e organizações da sociedade paulista ao programa que o secretário de segurança de São Paulo, o capitão Guilherme Derrite, que entrou para a política depois de ganhar fama como influencer bolsonarista, precisou rever sua promessa de acabar com o projeto. Ele decidiu considerar os esforços e feitos de seus antigos superiores na corporação e assumiu prometendo ampliar o uso das câmeras. Os apelos populistas e a tradição do enfrentamento, contudo, falaram mais alto.

A desistência começou a se tornar explícita depois da morte do soldado Patrick Bastos Reis, integrante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, assassinado a tiros no Guarujá. O governo colocou em prática a Operação Escudo, na Baixada Santista, que ganhou nas redes o apelido de Operação Vingança. A tradição da vingança policial é antiga. Em 1968, a morte de um policial em São Paulo levou policiais a criarem o Esquadrão da Morte no estado, iniciativa propagada nos jornais da época durante o enterro do agente.

Em 2006, depois dos ataques do Primeiro Comando da Capital a policiais, foram registradas centenas de execuções ao longo da semana, que ficaram conhecidos como os Crimes de Maio e resultou na criação do grupo Mães de Maio, para cobrar apuração dos homicídios no período. São inúmeros e recorrentes os casos ao longo da história. A vingança, ao que parece, parece ser considerada por parte das tropas como um direito de guerra.

No caso da Operação Escudo, quarenta dias depois de iniciada, 28 pessoas morreram. Diversos testemunhos torturas e execuções nas ações foram dados à Ouvidoria. Ministério Público e defensoria pediram acesso as imagens das ações. Relatório da Humans Right Watch informou que apenas nove das 28 mortes tiveram imagens enviadas ao MP. Defensoria Pública e a ONG Conectas entraram com ação na Justiça cobrando o uso de câmera nesse tipo de operação policial, mas não conseguiram decisão favorável.

Ainda no ano passado, medidas práticas passaram a ser tomadas para que o programa fosse abandonado aos poucos. O governador passou a reduzir o orçamento e a abrir mão do compromisso com a redução da letalidade. No dia 2 de janeiro deste ano, Tarcísio de Freitas se sentiu à vontade para desacreditar o uso das câmeras em uma entrevista ao SP TV, sabotando e jogando fora o esforço de três anos seguidos da PM paulista. “Qual a efetividade das câmeras na segurança do cidadão? Nenhum”, ele disse na entrevista. Ao invés disso, prometeu investir no aumento do efetivo da polícia e dos equipamentos na capital, com mais cinco mil homens e 500 viaturas. Ele parece não ter prestado atenção na lição do Rio de Janeiro e na genealogia das milícias. Quando os investimentos em homens e equipamentos são feitos em polícias com controles frágeis, que diminuem o compromisso nas ruas com as leis e a autoridade, o dinheiro pode acabar sendo usado para fortalecer e aumentar o crime.

Entidades da sociedade civil emitiram uma nota criticando o abandono do programa, entre elas o Núcleo de Estudos da Violência da USP, em que atuo como pesquisador. Leia aqui a íntegra da nota.
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