A evolução da inovação: a natureza das faculdades cognitivas humanas

Por Carlos A. Navas, professor do Instituto de Biociências da USP, Shigeru Miyagawa, professor do Massachussets Institute of Technology, e Vitor Nóbrega, pós-doutorando no Instituto de Biociências da USP

 18/10/2023 - Publicado há 7 meses
Carlos A. Navas – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Shigeru Miyagawa – Foto: Arquivo pessoal
Vitor Nobrega – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

Os seres humanos são o resultado de bilhões de anos de evolução biológica. Uma forma de estudar e entender tal processo é estabelecer relações de afinidade evolutiva mediante análises de diversos tipos de composição biológica, incluindo o genoma. Nesse tipo de análise, os humanos podem ser identificados como parentes próximos de primatas não humanos, como os chimpanzés e os bonobos. Mesmo assim, os comportamentos que caracterizam os seres humanos mostram, sem ambiguidade, uma enorme lacuna cognitiva entre humanos e outros primatas, e certamente entre humanos e o restante do reino animal. Essa curiosa lacuna cognitiva coloca a espécie humana em uma posição incomum no curso da evolução; resultado, aparentemente, de um notável salto evolutivo.

Entender a natureza, a evolução e a ontogenia das faculdades cognitivas humanas representa um profundo desafio intelectual que envolve, inerentemente, inúmeras disciplinas e focos analíticos. Nesta nota, gostaríamos de ressaltar um aspecto evolutivo que consideramos particularmente interessante: a evolução da inovação; no sentido de que a linhagem humana apresenta um grau crescente de inovação e de criatividade, que pode ser facilmente observado no comportamento dos humanos modernos. A complexidade do comportamento humano é enorme e historicamente reconhecida, desde o início do pensamento evolutivo moderno. Como observado por Alfred R. Wallace, proponente de uma teoria da evolução por seleção natural, juntamente com Charles Darwin, as leis da seleção natural não esclarecem de modo objetivo o surgimento da “natureza moral e intelectual humana”.

Embora reconheçamos traços característicos de altruísmo e agressão em outras espécies primatas, habilidades cognitivas complexas, tais como (i) uma capacidade linguística, (ii) a capacidade de desenvolver atividades mediadas simbolicamente e (iii) a capacidade de produzir ferramentas sofisticadas, são consideradas exclusivas dos humanos modernos. Esse conjunto de características, de alguma forma correlacionadas, parece ter emergido recentemente na evolução da linhagem humana, logo após o Homo sapiens surgir como uma entidade biológica há cerca de 200-300 mil anos. Com base em análises genéticas, acredita-se que as habilidades cognitivas subjacentes à linguagem humana tenham aparecido há pelo menos 125 mil anos.

A aquisição dessas capacidades parece ser concomitante à aceleração na velocidade da trajetória de inovações em diversos contextos, um deles facilmente percebido através do registro arqueológico: o desenvolvimento das ferramentas líticas. Adicionalmente a essa concomitância, a produção sistemática de artefatos sugestivamente simbólicos ocorre lado a lado à emergência cada mais vez rápida de novas indústrias líticas. Por exemplo, a produção sistemática de gravuras não figurativas geométricas em placas de ocre e em cascas de ovos de avestruz inicia-se por volta de cem mil anos atrás. Em termos evolutivos, esse intervalo de tempo é um mero piscar de olhos, não apenas no tempo geológico, mas também ao se considerar os 6-7 milhões de anos da evolução dos primatas bípedes.

Reconstruir a história evolutiva dessas três habilidades cognitivas, supostamente específicas da espécie humana, é justamente o objetivo do projeto temático Fapesp-SPEC Inovações em Comunidades de Animais Humanos e Não Humanos, coordenado pelo professor Shigeru Miyagawa (MIT/USP/Seikei) e com a participação dos docentes e pesquisadores da USP que assinam ou são citados neste artigo*. Buscamos entender a evolução das bases cognitivas subjacentes a inovações intelectuais que consideramos essenciais, procurando antecedentes na natureza que possam explicar seu desenvolvimento evolutivo relativamente recente e em rápida progressão.

Uma possível explicação estaria na existência de características que poderíamos apelidar de “precursores evolutivos” para essas capacidades, os quais teriam funcionado de forma relativamente separada ao longo da maior parte da história evolutiva. Esses componentes poderiam ter se relacionado a partir de modificações neurofisiológicas, com impactos muito rápidos em diferentes níveis de organização. É uma possibilidade, embora não a única, para uma pergunta transcendental. Como surgiram as habilidades linguísticas complexas que, junto com o raciocínio simbólico, com suas múltiplas derivações, permitem níveis de criatividade e inovação nunca vistos na história evolutiva?

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* Linguística – Shigeru Miyagawa e Cilene Rodrigues (Pontifícia Universidade Católica do Rio) / Primatologia – Eduardo Ottoni (Instituto de Psicologia-USP) e Tiago Falótico (Escola de Artes, Ciências e Humanidades-USP) / Arqueologia – Astolfo Araújo (Museu de Arqueologia e Etnologia-USP) / Ecofisiologia e Comportamento Animal – Carlos A. Navas e Catherine Bevier (Colby College) / Paleoantropologia – Mercedes Okumura (Instituto de Biociências-USP) / Neurociências –Analia Arévalo e Guilherme Lepski (Faculdade de Medicina-USP).

Os pesquisadores que integram o projeto estarão reunidos no evento Innovations over the arc of the evolution: Frogs, monkeys, humans SPEC Workshop, no dia 20 de outubro de 2023, das 10h às 18h horas, no Auditório Renato Basile, do Instituto de Biociências. Interessados podem se unir ao evento sem a necessidade de inscrição prévia.

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