Do Jardim da Saúde Pública ao Jardim do Éden

Por Beatriz Damásio Penteado, Christian Hayato Sato, Kathleen Reichow de Figueiredo, alunos da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, e outros autores*

 25/05/2023 - Publicado há 12 meses
Beatriz Damásio Penteado – Foto: Arquivo pessoal
Christian Hayato Sato – Foto: Arquivo pessoal
Kathleen Reichow de Figueiredo – Foto: Arquivo pessoal

 

Este artigo, escrito pelos estudantes do bacharelado de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, é fruto de uma atividade de caminhada na cidade de São Paulo desenvolvida conjuntamente pelas disciplinas de Promoção da Saúde e Comunicação e Processos Educativos.

Olhar, sentir e refletir sobre a cidade e seus contrastes é o objetivo principal da atividade, para documentar os desafios e potenciais para a produção social da saúde no ambiente urbano.

Os estudantes são divididos em grupos, e cinco roteiros são percorridos, de preferência a pé, a partir da entrada da FSP até seu destino final:

1. Um bairro da periferia;
2. Até o fim da R. Augusta, sentido Centro;
3. Até o fim da Av. Paulista;
4. Até o Parque Ibirapuera;
5. Até o Mercado Municipal de São Paulo.

O texto que se segue é sobre a caminhada que o grupo de estudantes, autores deste artigo, fez até o Parque Ibirapuera.

A peregrinação teve início por volta das 10h30 da manhã do sábado – 6 de maio –, totalizando 4,1 km em pouco mais de uma hora. Partimos do portão principal da faculdade (porque o bendito Portão 2 estava fechado) e descemos a Rua Teodoro Sampaio para andar pela luxuosa Oscar Freire. Aqui, recitamos (e modernizamos) uma famosa frase de Dante Alighieri: “Ó vós que entrais, abandonai toda a esperança” de ter esse poder de compra, incitado pelos diversos cheiros das lojas.

Entre prédios de alto padrão e carros importados, alguns trabalhadores varrendo as largas calçadas dos comércios e dos condomínios. Outros “ajudavam” os moradores a fazer mudanças (talvez para um outro paraíso paulistano). Nós (possivelmente, assim como esses trabalhadores), sonhávamos em morar nesse local enquanto passávamos na frente de cada prédio: um desejo capitalista que a sociedade nos ensinou, praticamente inerente às nossas vontades.

Mas e quanto à personificação dos moradores e frequentadores dessa região? É até engraçado observar como há um padrão de vestimenta – levando em consideração que era um sábado. A bermuda bege de sarja, aliada a uma camisa de manga curta sob medida, óculos escuros pendurados. Nos pés, um mocassim marrom ou faustosos sapatos, que sequer sabemos de qual marca seriam. Os longos vestidos, as bolsinhas da Louis Vuitton, e as crianças, que seguem basicamente sem escolha, o padrão luxuoso. Quem não seguia essa unanimidade, seguia a luxúria de hábitos: roupas de academia monocromáticas, jogging, ou acabando de sair da aula de hot yoga.

Demos continuidade à nossa peregrinação: ao invés de continuar até o fim da Oscar Freire, entramos na Alameda Ministro Rocha Azevedo até o fim da Rua Argentina, chegando ao Jardim do Éden… quer dizer, Jardim Paulista. Suas ruas e calçadas largas (pouco esburacadas, não ironicamente) e silenciosas, com poucas pessoas, casas enormes e muros maiores ainda, opacos, assim como Deus seleciona quem pode ou não entrar no paraíso. Isso tudo porque é sabido que “é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” e então é por isso que criaram o próprio paraíso na Terra?

Na Avenida Brasil, outra avenida extremamente larga, perdemos a contagem de quantas BMW, Audi, Mercedes, Porsche e tantas outras marcas de importados passavam por aquele liso asfalto, alguns ultrapassando pela esquerda em velocidade altíssima. Inúmeros estabelecimentos de medicina preventiva ou privativa, representando a medicalização, o salão de beleza para os outros cuidados particulares e estéticos, os restaurantes mais caros que todos os alunos da USP pagam juntos num bandejão do dia. O acesso era exclusivamente… pelos carros, com poucos pontos de ônibus pela região, que tinham um longo intervalo de tempo. E mais uma vez, é como se quisessem limitar quem pode ou não frequentar o paraíso paulistano. É uma região tão hostil e exclusiva, que até mesmo pessoas que vendem balas e flores no farol são poucas.

E, assim, fomos até o fim da Avenida Brasil, como se fôssemos os únicos pedestres da região. Embora tivesse semáforos, ainda era um pouco complicado para atravessar a Avenida Brigadeiro Luís Antônio para alcançar a Rua Manoel da Nóbrega, onde teríamos o acesso pelo portão 9 do Parque Ibirapuera. E mesmo chegando ao portão, os pobres não têm paz: uma rica burguesa atropelou um dos integrantes do grupo com sua bike Caloi, mais cara que o IPVA de um carro popular. Ela, por sua vez, sequer pediu desculpas, ainda se incomodando pelo simples toque em sua bicicleta.

Sentimos na pele o sentimento do “despertencimento” do lugar, onde passávamos, bombardeados pelo excesso de informação das lojas com suas tabelas de preços exorbitantes e vitrines luxuosas convidativas, seus chamativos cheiros, deixando explícito quem pode e quem não pode entrar e comprar. Todo o lugar é movido pelo consumismo de artigos exclusivos de luxo da alta classe burguesa paulistana, em um contraste pavoroso e marcante com os moradores de rua, sendo exceção durante o percurso, que frequentava as ruas, ficando claras a invisibilidade e a desumanização desses indivíduos naquele meio.

Então é isso, o que vemos é que o direito à cidade não é o mesmo para todos. A cidade não é a mesma para todos. Quem pertence à cidade? Ela se assume de diversas formas dependendo de onde e de como se vive nela. Muitos têm acessos na palma de sua mão, o luxo significa beleza, o muro, segurança.

Ao caminhar e atravessar as ruas da grande metrópole, somos também atravessados por ela. É fato que o que afeta é questionado. Pois é… estamos num lugar diferenciado. É tão diferente que na mesma cidade contamos os dias, horas, moedas e vitrines. Ouvimos “uma imagem na cabeça e uma vontade no coração”… de viver? E ao mesmo tempo sentimos a desconexão das ruas que se cruzam, uma simetria distante, temos a cidade num olhar emoldurado, os olhos nos caminhos que falam do passado, descrevem o presente e mostram a incerteza do futuro, uma história em cada fresta.

De um lado vemos a cidade, de outro, the city ou metrópole, as barreiras nos encontros, as buzinas nos ouvidos, costuramos entre os meios desordenados. Atravessamos o caminho dos jardins com as flores mortas que se transformam num lindo arranjo, um arranjo lindo feito para quem pode ter. E aí a pergunta que fica é: qual São Paulo você vê?

* Breno Augusto Gonçalves, Catarina Almeida Mançano Fernandes, Marcos Vinícius Pereira Mota e Marina Garcia Custódio, alunos de graduação da FSP-USP, Mariana Bartos Scaff Haddad e Rubens Yoshimassa Moriya, pós-graduandos da FSP-USP, e Carlos Botazzo e Marco Akerman, professores da FSP-USP

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