População em situação de rua, barracas, microcenas e macrodramas

Por Eduardo de Lima Caldas e Martin Jayo, professores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 24/05/2023 - Publicado há 11 meses
Eduardo de Lima Caldas – Foto: IEA
Martin Jayo – Foto: Reprodução Youtube

 

A terra e a propriedade no Brasil ou são privadas ou são públicas. Quando são privadas, legal ou ilegalmente, são vistas como “minhas”. Quando são públicas, são “de ninguém” ou, muito esporadicamente, “do governo”. Sendo “de ninguém” ou “do governo”, nada mais justo que se tornem “minhas”. Dificilmente uma área, terra ou propriedade é vista como “nossa”. E não se trata de algo novo. Desde a Lei de Terras de 1850, as terras devolutas tornaram-se do Estado e a partir disso nenhum pobre ou ex-escravizado as ocupou, mas muitos grandes proprietários as grilaram.

Nas nossas cidades, de quem é a praça? “De ninguém” ou “do governo”. E sendo de ninguém, tem sido ocupada por desamparados pelo poder público, que ali instalam barracas para morar. De quem é o trecho de rua sem saída em que eu moro? “De ninguém”, e assim nada mais normal do que instalar portões e guaritas e fechar a rua, privatizando-a. Barracas de camping, guaritas de alvenaria: cada um privatiza com o que pode.

O cientista político Guillermo O’Donnell (1936-2011) publicou há 35 anos um artigo primoroso, intitulado Situações (Revista Novos Estudos, São Paulo, no 22, outubro de 1988), em que descreve “microcenas” da privatização do espaço público em São Paulo. Uma dessas microcenas se dá no trânsito, nas grandes avenidas onde motoristas avançam ziguezagueando entre pistas, tomando ávida e perigosamente para si cada nesga de espaço entre veículos que trafegam nas demais faixas de rodagem. Outra é o uso da vaga de estacionamento exclusiva para pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção por motoristas que não se encaixam nesse perfil, sob o argumento de que “se eu não o fizer, outro com certeza o fará”.

O’Donnel prossegue enumerando microcenas: a apropriação de praias ou trechos de praia por proprietários de casas em loteamentos ou condomínios de veraneio, o fechamento de vilas e ruas sem saída, a instalação de lombadas e quebra-molas para coibir o trânsito em bairros de classe média sem autorização pública. “Embora tenha viajado muito, não conheço outro país onde se tenha chegado a esse extremo”, diz O’Donnell, sobre essas diferentes modalidades de apropriação privada do espaço público.

Em complemento às microcenas, podemos lembrar também do estacionamento em fila dupla em frente às escolas; a ultrapassagem pelos acostamentos; a ocupação de calçadas por mesas e cadeiras de restaurantes e bares, impedindo a passagem de transeuntes, sobretudo de cadeirantes.

Recentemente, este tema do uso privado do espaço público, que de tempos em tempos volta a chamar a atenção por conta de vendedores ambulantes, retornou à tona em função de uma nova modalidade de privatização que é o uso de barracas pela população em situação de rua. Muitas ruas e praças tornaram-se uma modalidade de acampamento. Se até então havia da parte do poder público certa leniência com o pobre que ocupava o espaço público, a fixação de barracas alterou o cenário, e a carga repressiva do poder público contra o pobre, contra a população morando na rua, tornou-se muito mais intensa, independentemente de qualquer esforço de resolver ou minimizar as causas da situação.

Em fevereiro de 2023, a Prefeitura de São Paulo publicou decreto que proíbe a montagem de barracas nas calçadas durante o dia. À noite a ocupação é tolerada; de dia o poder público as removerá. O município também tem legislação específica sobre o uso das calçadas, e nem por isso existe esforço da mesma ordem para que, em cumprimento a ela, as calçadas sejam adequadas aos pedestres e a obstrução por mesas e cadeiras seja evitada.

O secretário executivo de Projetos Estratégicos da prefeitura, Alexis Vargas, garantiu em entrevista à Rádio Bandeirantes, em 1o de abril, que a remoção de barracas só ocorre após aviso e negociação com a pessoa em situação de rua. Em suas palavras:

“A gente primeiro passa com os técnicos de assistência social, avisando eles que ali vai ter uma limpeza e que eles precisam retirar os pertences. Só é apreendido quando eles se recusam a retirar. Quando é apreendido, fica à disposição no depósito da subprefeitura para que ele possa retirar e é sempre oferecido o acolhimento. A gente tem uma rede de acolhimento de 21 mil vagas”.

Resulta interessante fazer um exercício de imaginação, no qual o mesmo secretário adapte suas ideias para os diferentes públicos igualmente privatizadores do espaço público. Vejamos como ficaria sua declaração, se voltada aos comerciantes proprietários de padarias e bares com mesas irregulares na calçada:

“A gente primeiro passa com os fiscais de postura, avisando eles que eles precisam limpar a calçada e além disso têm que retirar definitivamente as mesas e cadeiras. Só é apreendido quando eles se recusam a retirar. Quando forem apreendidas, ficarão à disposição no depósito da subprefeitura para que ele possa retirar e será sempre oferecida uma relação de imóveis para alugar nas imediações dos seus negócios, para que possam melhor atender seus clientes e aumentar o número de mesas e cadeiras à disposição”.

Ou então na entrada de uma vila de casas:

“Nós gostaríamos que os senhores retirassem os portões, grades e guaritas. Nós só vamos fazê-lo se vocês se recusarem, e neste caso vamos poupar os seus esforços e mesmo o custo da remoção. Faremos a retirada e deixaremos à disposição no depósito da subprefeitura. Também temos à disposição uma lista de trabalhadores cadastrados, que podem realizar a instalação de grades e muros nos limites de suas propriedades privadas, se assim desejado”.

A complexa partilha do espaço público (o que é de todos é “de ninguém”) permite retomar o artigo de O’Donnell para tratar da dificuldade de conciliar as microcenas da privatização do espaço com os macrodramas sociais. A dificuldade em tratar o espaço público como espaço de todos e compartilhá-lo é fato, e cabe aos poderes públicos estabelecer as regras para tornar a apropriação desses espaço não só mais civilizada, mas socialmente mais equilibrada.

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