O feminismo, aos poucos, colhe os resultados de anos de luta e lideranças femininas, mas, em 2023, movimentos comandados por homens tentam garantir seus privilégios e manter a mulher em uma posição de inferioridade e fragilidade. O termo red pill, pílula vermelha em português, ganhou destaque nos últimos tempos após alguns vídeos viralizarem na internet, espalhando um discurso misógino, que pode ser considerado uma filosofia de vida.
O termo faz referência ao filme Matrix, no qual é oferecida a blue pill, pílula azul, ao personagem principal, que o mantém em um mundo de fantasia e ilusão, e também a red pill, que o faz ver o mundo de forma clara e verdadeira. Para os adeptos desta filosofia, existe uma superioridade feminina, em uma sociedade injusta, na qual as mulheres tentam roubar o papel do homem.
Após anos de silenciamento das mulheres e da sua exclusão em espaços públicos e privados, ao verem o feminino ganhar força nas últimas décadas, com lutas, reinvindicações e o movimento feminista conquistando espaço, essa parcela dos homens acredita que precisa reconquistar o seu papel central na sociedade e manter privilégios que os cercam desde o início de sua existência.
O psicólogo e mestrando da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, André Villela de Souza Lima Santos, conta que os homens que acreditam nesse pensamento reproduzem a ideia de que a mulher nasceu para servir ao homem, para o trabalho doméstico, e afirmam que a mulher tem uma predisposição biológica para sempre buscar o homem que pode prover melhor suas necessidades. “Assim, a mulher teria mais dificuldade em se manter fiel num relacionamento, como se ela tivesse um determinismo biológico de sempre trair e abandonar um homem, em busca de um melhor.”
A internet como um local sem lei
Apesar de crescer e de se difundir principalmente na internet, dando a ideia de que não afeta diretamente as mulheres, a propagação desse conteúdo influencia e potencializa atitudes machistas e reafirma pensamentos ultrapassados. A falta de regulamentação e de punição para discursos que ofendem minorias, ou qualquer outro tipo de discurso de ódio, aumenta o alcance desse conteúdo, que naturalmente gera muito engajamento nas redes sociais. “Essa impunidade é perigosa, ela permite que esses discursos se alastrem e consigam novos seguidores”, afirma o psicólogo.
O discurso, até então abstrato, impacta as mulheres na medida que os chamados coaches ou professores ensinam seus alunos sobre essa filosofia e eles aplicam com mulheres do seu convívio. Muitos cursos são vendidos por homens, que se dizem sábios, e treinam seus seguidores a usarem técnicas absolutamente abusivas para conquistar mulheres. “Isso então vem para o mundo concreto, para o mundo off-line”, acrescenta Villela.
Conforme um levantamento divulgado este ano pelo Instituto Patrícia Galvão e realizado pelo Datafolha, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), quase 6 milhões de mulheres em todo o Brasil sofreram ofensas sexuais ou tentativas forçadas de manter relações sexuais e 35 mulheres foram agredidas físicas ou verbalmente por minuto no ano passado. Os números mostram o impacto do discurso na vida das mulheres.
Muitos homens são fisgados por um discurso que tem muitas preconcepções sobre o que é ser homem, como eles devem agir e que muitas vezes vai em uma direção de suprimir suas emoções e seguir uma vida absolutamente rígida. Assim, esse discurso impacta não somente as mulheres, mas também o homem, que ainda enfrenta estereótipos que o impedem de viver de forma leve.
A importância do feminismo
A reprodução desse tipo de ideologia bate de frente com o movimento feminista que, em passos lentos, ganha força na sociedade e colhe frutos de anos de luta contra o patriarcado. Para o psicólogo, os red pills apenas são mais um capítulo e obstáculo para alcançar direitos que ainda precisam ser conquistados e consolidados. “A ameaça é justamente o patriarcado, por mais que a questão do red pill traga novas peculiaridades e esse impulsionamento pela internet.”
Levantar o debate sobre o tema de forma responsável e trazê-lo para a discussão é imprescindível no combate a esse tipo de discurso. Para as mulheres feministas, que ainda têm que se deparar com a propagação desses pensamentos, falar sobre estes parece melhor do que apenas deixar que se alastrem e ganhem cada vez mais espaço, tanto na internet, de forma irrestrita, como no mundo real. “É preciso trazer para o debate para que a gente possa aprender a lidar e combater esse discurso misógino”, completa o especialista.
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