Eunice Ribeiro Durham. Uma nota de respeito, reconhecimento e afeto

Por Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora da USP e professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 20/07/2022 - Publicado há 2 anos
Eunice Ribeiro Durham - Foto: Reprodução/Canal USP
Maria Arminda do Nascimento Arruda – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

 

Faleceu nesta terça-feira, 19, a antropóloga Eunice Ribeiro Durham, uma das personalidades mais marcantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e da Universidade de São Paulo. Nascida em Limeira, em 3 de julho de 1932, veio com a família para São Paulo quando tinha três anos. Filha de um professor de História, docente do Colégio Rio Branco, na época em que a profissão era altamente distinguida, Eunice seguiu a trajetória escolar típica dos herdeiros da classe média ilustrada capital paulista. Foi aluna dos prestigiados Colégio Caetano de Campos e Colégio Rio Branco. O seu ambiente familiar a predispunha ao exercício da docência e a preferir os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – FFCL –, instituição que franqueou aos filhos de imigrantes ascendidos o ensino superior, mas também abriu caminho para a realização das novas vocações além das profissões tradicionais.

Graduada em Ciências Sociais em 1954, Eunice pertenceu à segunda geração formada na FFCL, ao lado dos colegas Ruth Leite Cardoso (de quem foi orientadora no doutorado nos anos 1970), Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Marialice Mencarini Foracchi, Paula Beiguelman, Maria Sylvia de Carvalho Franco, João Baptista Borges Pereira, dentre outras figuras notáveis. Aluna dos professores da primeira geração formada pela USP, como Florestan Fernandes, Antonio Candido de Mello e Souza, Gilda de Mello e Souza, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Lourival Gomes Machado, Gioconda Mussolini, ela teve como orientador o etnólogo Egon Schaden, que foi aluno de Claude Lévi-Strauss. Contemporânea e amiga de acadêmicos e intelectuais de enorme projeção, como José Arthur Giannotti, Paul Singer, Fernando Novais, grupo que cultivou uma sociabilidade universitária esmerada, baseada em laços de amizade, visões generosas de mundo, compromissos sociais, Eunice conciliou à docência, a pesquisa inovadora, a ação institucional e presença pública. Em todos os campos de atuação primou-se pela excelência e pelo caráter marcante, típico de personalidades das quais a gente nunca se esquece.

Tendo sido convidada por Gioconda Mussolini para assistente, lembro-me das suas aulas de mestra exemplar, aliando o preparo meticuloso da exposição à capacidade didática. Como pesquisadora, inovou ao tratar da imigração italiana para São Paulo, tema do seu mestrado, defendido em 1964. O doutoramento veio em 1967, com estudos pioneiros de antropologia urbana. 

O livro A Caminho da Cidade, publicado em 1973, é bibliografia obrigatória a todos aqueles que se dedicam a entender os processos de mobilidade e assimilação de recém-chegados. As suas pesquisas sobre fenômenos sociais complexos não a afastaram, contudo, do exame da tradição disciplinar, presente no livro sobre A Obra Etnográfica de Bronislaw Malinowski, publicado em 1978, que se firmou também como referência para os estudos a respeito do paradigma funcionalista nas Ciências Sociais. Família e Reprodução Humana, de 1983, e, especialmente, A Dinâmica da Cultura – Ensaios de Antropologia, de 2004, assinalam o legado definitivo de Eunice Durham no âmbito das pesquisas que tratam da centralidade da esfera simbólica na vida social.

Sem descuidar de sua trajetória acadêmica, Eunice assumiu os compromissos com a gestão universitária e com a elaboração e a implementação de políticas científicas. O reconhecimento dos pares veio na forma de prêmios e distinções acadêmicas, como a Ordem Rio Branco, em 1996, a Ordem Nacional do Mérito Científico, em 2001, o título de Professora Emérita da FFLCH e da USP, em 2002, dentre várias outras honrarias. O seu papel à frente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), como presidente em dois mandatos, 1978-1980 e 1982-1984, reforçou a participação dos especialistas na elaboração das políticas indigenistas no Brasil e os tornou atores centrais no debate público, deixando uma herança que frutificou na área da defesa dos direitos dos povos originários. Ela compôs o Comitê Acadêmico da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) entre 1987 e 1988 e foi fundamental na articulação das políticas na área. Ainda no âmbito da gestão científica, a antropóloga ocupou o cargo de vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a presidência da Capes em dois momentos, durante o governo de Fernando Collor de Mello, quando José Goldemberg ocupou o Ministério da Educação, e no governo de Fernando Henrique Cardoso, no período ministerial de Paulo Renato de Souza. É digno de relevo o seu papel como pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), instituição criada por professores compulsoriamente aposentados no regime ditatorial, sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso. Seu nome também figura com destaque na fundação na USP do Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior (Nupes), que desde 1989 vem desenvolvendo avaliações e diagnósticos sobre as universidades, voltados ao aprimoramento das políticas para o setor.

Tenho muitas lembranças da professora, da qual fui aluna, admiradora, usufruindo da sua convivência. Sempre vi nela um modelo de mulher acadêmica, que, embora tenha firmeza ao defender suas posições, sabe se abrir ao debate e ouvir opiniões diversas e principalmente as novas gerações. Eunice era elegante. Havia um brilho singular no apuro e na sobriedade dos seus trajes muito bem compostos; era mãe de Alan, hoje professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP; interessava-se por nós, alunas, e com a nossa condição de mães. 

Eunice foi uma mulher pioneira e multifacetada, haja vista a trajetória inusual para a sua geração. Foi e ainda é inspiração para outras mulheres na academia, seja como pesquisadora e intelectual de alto nível, seja na seara das políticas científicas e dos assuntos públicos, seja ainda no protagonismo feminino em um ambiente adverso. Jamais se deteve diante da necessidade de denunciar iniquidades, violações de direitos e ataques à democracia.

Aprendi muito com ela. Guardo imagens ímpares. Durante a minha gestão à frente da Anpocs (2000-2004), em um momento particularmente delicado da associação, fui consultá-la e só recebi acolhida e opiniões qualificadas. Quando ocupei, juntamente com o professor Paulo Martins, a direção da FFLCH (2016-2020), criamos um comitê de Professores Eméritos e grados para colaborarem com a direção. Ela esteve presente em todas as reuniões. Na última, caminhou até a janela, para não incomodar com o seu cigarro, e me falou: 

— Acho que não tenho mais a contribuir; a Universidade mudou e agora é com vocês. 

Discordei. Mas aquele seu jeito peremptório não me deixou dizer mais nada. Muita saudade, Professora.


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