Reflexões e propostas para uma universidade mais inclusiva e democrática pela ótica discente

Por Júlia Sanches, mestranda da Escola Politécnica (Poli) da USP, Luene Vicente, mestranda da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Lucas dos Santos, doutorando do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, e outros autores*

 14/06/2022 - Publicado há 2 anos
Júlia Guimarães Sanches – Foto: Arquivo pessoal
Luene Vicente – Foto: Arquivo pessoal
Lucas dos Santos – Foto: Arquivo pessoal

 

A entrada na pós-graduação carrega consigo mais que a mudança de etapa acadêmica, apresentando condições que se distanciam daquelas encontradas na graduação. Muitas vezes vivenciando pela primeira vez o trabalho de pesquisa em tempo integral, este ingressante também experimenta os dissabores do desamparo financeiro e emocional em um mundo que exige um formato rígido de entregas e dedicação. A/o/e pós-graduanda/o/e tropeça em uma realidade de ausência de apoios que existem na graduação (como auxílio moradia, auxílio alimentação e auxílio livros), além da diminuição do número de bolsas fornecidas aos programas/projetos, condições que escancaram a insuficiência de programas que garantam e permitam a permanência deste/a pesquisador/a/e na ciência brasileira.
Não é incomum ouvir desabafos de colegas sobre esta situação, seja pela falta de moradia universitária emergencial ao chegar a uma cidade nova, seja pela insuficiência de auxílios que deem conta das necessidades de pós-graduandas/os/es. Mesmo quando há disponibilidade de bolsas de pesquisa, tal situação ainda não é totalmente resolvida. Sem reajuste desde 2013, as bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de R$ 1.500,00 (mestrado) e R$ 2.200,00 (doutorado) ao mês, não mais garantem dedicação exclusiva e integral às pesquisas de pós-graduação, que constituem a maior parte das atividades científicas desenvolvidas no País.
Dentro da pós-graduação, essa precarização veio na sequência de um período em que ocorreu, pela primeira vez, a instituição de ações afirmativas visando a corrigir a falta de inclusão de partes expressivas e historicamente marginalizadas da população brasileira. Na graduação, foi aprovada já em 2012, pelo Congresso Nacional, a Lei Federal nº 12.711/2012, estabelecendo a reserva por todas as instituições federais de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI); e estudantes de escolas públicas e de baixa renda. Já na pós-graduação, somente em 2016 foi publicada pelo Ministério da Educação a Portaria Normativa nº 13/2016, revogada pela Portaria MEC nº 545/2020, que instituiu que as instituições federais deveriam apresentar propostas para a maior inclusão de estudantes PPI e com deficiência (PCD) em seus programas. Embora a portaria só estabelecesse a obrigatoriedade de apresentação de propostas, no período seguinte ocorreu a implementação de ações afirmativas nos processos de admissão de vários programas de pós-graduação. Até janeiro de 2018, 18% do total de programas de pós-graduação de universidades públicas brasileiras, com conceito Capes 3 ou maior, já adotavam esta política.
Ainda em 2021, na USP, o Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) reservou 20% das vagas do mestrado e doutorado para o primeiro semestre de 2022 aos grupos PPI, PCD e pessoas quilombolas, transexuais, pertencentes ao espectro autista, idosas e a refugiados. Já a Faculdade de Direito instituiu, pela Deliberação CPG-FD/USP nº 02/2021, o acréscimo de 20 vagas ao seu edital reservadas aos grupos PPI e grupo PCD. Também em 2021, o Programa de Pós-Graduação em Ecologia fez sua primeira seleção com ações afirmativas. Como também o Programa de Pós-Graduação de Ciências da Reabilitação da Faculdade de Medicina, que, em dezembro de 2021, aprovou a inclusão de ações afirmativas em seu edital, onde cada orientador pleno do PPG terá uma vaga reservada exclusivamente para candidatos/as/es autodeclarados/as/es PPI, quilombolas, transexuais, transgêneros, travestis, PCD e em vulnerabilidade econômica. Tais iniciativas se somam a tantas outras já existentes, como nos processos seletivos dos programas de pós-graduação em Ciência Política (PPCP), em Antropologia Social (PPGAS) e em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (Diversitas), na FFLCH, e em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP), na EACH, que também estipulam algum tipo de ação afirmativa ao menos desde 2017.
Enquanto as políticas citadas continuam a transformar o perfil da pós-graduação, não se vê uma evolução paralela nas políticas de permanência da Universidade. Enquanto na graduação foi institucionalizada uma política de permanência e assistência estudantil na forma do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), não há iniciativa equivalente na pós-graduação. Os apoios são limitados a vagas em moradias estudantis e auxílios financeiros pontuais (para alimentação e moradia), sem um programa instituído. Embora o Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE) possa se tornar uma fonte de renda adicional, este não se configura como política de permanência propriamente dita, pois se trata de um estágio de iniciação à docência. Um trabalho efetuado por pós-graduandas/os/es nas disciplinas de graduação da USP e restrito a um porcentual baixo de estudantes, com critérios de inclusão regulados por cada unidade, descentralizado, e muitas vezes desconsiderando fatores sociais e econômicos.

Paralelamente, não existem dados públicos sobre as condições socioeconômicas de estudantes de pós-graduação da USP nem uma descrição detalhada dos programas de permanência já existentes na Universidade. O próprio orçamento da USP não discrimina um orçamento específico para a pós-graduação, que, em seus Anuários Estatísticos desde 2012, só é incluída nos dados de permanência como uma nota de rodapé do número de vagas de moradias destinadas à graduação e à pós-graduação como um todo. Há insuficiência tanto em políticas de permanência quanto na coleta e divulgação de dados. Neste cenário, como podemos pensar em uma política de permanência para a pós-graduação na USP condizente com a realidade de seus discentes? Feitas essas considerações, apresentamos, de forma sintética, algumas propostas que consideramos fundamentais:

1 – Construção de uma política de permanência estudantil para a pós-graduação da Universidade de São Paulo, incluindo auxílio financeiro destinado a pós-graduandos/as/es que se encontram em situação de vulnerabilidade social.
2 – Melhor coleta e divulgação dos dados orçamentários destinados à permanência na pós-graduação na USP e de dados referentes ao perfil socioeconômico de estudantes dos programas.
3 – Construção de uma diretriz universitária para guiar ações afirmativas dentro dos programas de pós-graduação da USP, incluindo participação discente na tomada de decisões.
4 – Alteração da diretriz central do PAE para que todos os editais contemplem questões sociais e econômicas nos processos de seleção de bolsistas, além de outros ajustes e melhorias no programa.
5 – Engajamento da USP, em seu conjunto (administração e comunidade acadêmica), pelo reajuste das bolsas de mestrado e doutorado das agências de fomento (Capes e CNPq).

* Todos os autores deste artigo são integrantes do Grupo de Trabalho do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil para a Pós-Graduação:
Alan Utsuni Sabino, doutorando do PPG-Oncologia (FMUSP)
Alberto Vinicius Sousa Rocha, mestrando em Solos e Nutrição de Plantas (Esalq/USP), APG Esalq/USP
Amanda Caroline Harumy Oliveira, doutoranda em Integração da América Latina (Prolam), APG USP Capital
Henrique Araujo Aragusuku, doutorando em Psicologia Social (IP), Coletivo da Pós do IPUSP
Ingred Merllin Batista de Souza, doutoranda em Ciências da Reabilitação (FMUSP), APG USP Capital
Jéssica Duquini dos Santos, mestranda em Gestão de Políticas Públicas (EACH/USP), APG USP Capital
Júlia Guimarães Sanches, mestranda em Engenharia Mineral (EP-USP), APG USP Capital
Lucas Marcelo de Sá Marques dos Santos, doutorando em Astronomia (IAG-USP)
Lucca Ignácio Morais Luiz, mestrando em Educação (FEUSP)
Luene Pessoa Vicente, mestranda em Biologia Comparada (FFCLRP), APG USP Ribeirão Preto
Luiz Fernando de Camargo Rodrigues, doutorando em Física (IF)
Mariana Shizue Gouveia Saito, doutoranda em Recursos Florestais (Esalq)
Rafael Rodrigo da Silva Pimentel, doutorando em Gerenciamento em Enfermagem (EEUSP)
Renan de Souza Dias, mestrando em Ciências da Engenharia Ambiental (EESC), APG USP São Carlos
Renato da Silva Cardoso, mestrando em Imunologia (ICB-USP)
Taís Rodrigues Tesser, mestranda em Mudança Social e Participação Política, ProMuSPP (EACH)


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