Boris e a então esposa Regina entraram no PCB em 1951 e tinham várias atividades como militantes e também deram baixa no desembarque de 1956. Entre as suas atividades, Boris respondia por um curso de Marxismo-Leninismo para formação de quadros voltados a imigrantes europeus em São Paulo. Avisou que deixaria o curso apenas quando o PCB indicasse o substituto, para não deixar os camaradas sem aula. Recebeu dia e horário em que o militante compareceria e Boris poderia passar o bastão.
Para a sua extrema surpresa, o substituo foi Carlos Marighella, uma das lideranças mais destacadas do partido. Como era de seu feitio, Boris apenas comunicou aos alunos estar deixando o curso e que o camarada iria substituí-lo. Sem entrar em detalhes, como a sua saída do partido. Como eram imigrantes, narrou breve biografia do novo professor e passou-lhe a palavra.
Boris ficou ainda mais surpreso naquela noite. Marighella disse ser o camarada Schnaiderman econômico em sua fala, e narrou a sua saída do Partidão. Defendeu a sua posição e de tantos outros camaradas, chamando-os de corajosos e coerentes em relação ao marxismo. Tal saída era para não serem cúmplices de crime inadmissível. Marighella também garantiu a sua futura saída do PCB, mas não naquele momento. Justificou ainda ter missões a cumprir – o que de fato aconteceu posteriormente.
A lembrança desse depoimento me vem à mente quando da estreia do filme de Wagner Moura e a “polêmica” irrelevante em torno da escolha do ator negro Seu Jorge como protagonista.
Quando Boris me depôs este único encontro com aquele que tanto admirava, perguntei-lhe se a questão do racismo estrutural no Brasil era abordada de alguma maneira no PCB. Ele mesmo, anos depois, se impressionou com o fato de nunca estar no horizonte provável essa chaga na cultura brasileira. Para o Partidão só existia a pirâmide marxista com super e infraestrutura. E justamente com tantos afrodescendentes, a exemplo de Marighella.
Boris foi além em sua lembrança: o racismo não era questão discutida nos anos de 1950 e muito depois nos mais variados extratos da sociedade, sendo ele mesmo completamente alienado em relação a essa questão. Só tomou consciência disso quando começou a lecionar na USP, em 1961, quando a sua turma de amigos na Rua Maria Antonia era formada por Antonio Candido de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Sergio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Ruy Coelho.
Pouco depois de entabular amizade com Florestan, este entrou no problema do racismo. Logo que Boris manifestou sua surpreendente ignorância, recebeu descompostura do colega – do absurdo de um professor da USP, independente do campo de conhecimento, desconhecer semelhante tema central. E logo passou-lhe seus estudos e de outros autores.
Outra tomada de consciência foi em relação ao cinema brasileiro. Até os anos de 1960, o cinéfilo Boris não lembrava de ter assistido produção nacional por duvidar que poderia ser feito algo de qualidade. Só entrava nas salas de cinema para ver produções russas e europeias, fora algumas exceções raras norte-americanas. Certo dia, encontrou-se com Paulo Emilio Salles Gomes na calçada em frente ao prédio principal da USP na Maria Antonia e revelou a sua discriminação. Gomes logo revelou uma das suas faces como defensor “sanguíneo”, intenso, de seus pontos de vista. Aos berros chamou Boris de ignorante e falou da importância extrema do cinema brasileiro, de Mário Peixoto até as chanchadas da Atlântida, com Oscarito e Grande Otelo. O esbregue não foi curto, e alunos e outros passantes olharam e alguns até pararam para admirá-lo. A partir de então, Boris passou a assistir filmes brasileiros.
Boris se foi com muitas certezas. Entre elas, a de ser um “comunista solitário” ao acreditar que o marxismo era o melhor na esfera teórica. Contudo, todas as tentativas em implementá-lo fracassaram e assim continuaria. Também se foi convicto da importância em combater toda e qualquer discriminação às minorias. Conhecendo a sua coerência, imagino o quanto acreditaria irrelevante a “polêmica” da escolha de Seu Jorge para interpretar Marighella. Afinal, ambos são afrodescendentes. E, quem sabe, apontaria um certo efeito de “estranhamento” positivo junto aos espectadores sobre o racismo, lembrando o conceito clássico do formalista russo Viktor Chklóvski.