Ideias da compreensão consciente e caminhos dos cruzamentos inconscientes

Por Cremilda Medina, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 19/10/2021 - Publicado há 3 anos
Cremilda Medina – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

 

 

Como traduzir agora a epifania dos encontros como Edgar Morin, ele aos cem anos, eu, quase vinte menos? Os fatos da memória, porém, justificam a emocionante celebração de estarmos vivos após uma longa atravessagem no mundo das ideias e nos imponderáveis cruzamentos do inconsciente coletivo. Posso assinalar os primeiros marcos há 50 anos, quando, na Universidade de São Paulo, se implantava o primeiro pós-graduação de Ciências da Comunicação na América Latina, e eu seria a primeira mestre aí formada em 1975. Esse foi o motivo para que viesse de Porto Alegre onde exercia a antiga função acadêmica de assistente de catedrático na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em dezembro de 1970 vim a São Paulo colher informações sobre o início dessa histórica pós-graduação na Escola de Comunicações e Artes; já em janeiro de 1971, cancelaria o contrato na UFRS e seria contratada na USP, no Departamento de Jornalismo, antes mesmo de cursar o pós-graduação, que começaria em 1972.

Pois bem, nos estudos bibliográficos de autores locais e estrangeiros, me deparei com um inquieto pensador que me oferecia, junto a outros hoje chamados de polímatas, um curioso contraponto à hegemonia da visão da indústria cultural, consagrada na Escola de Frankfurt. E aí se inseria a comunicação social e o jornalismo. Ao ler o livro de Morin de 1972, Cultura e comunicação de massa, logo me dispus a rastrear as novas compreensões das forças simbólicas que regem o processo cultural dos conflitos contraditórios. O que outro autor fundante, Jean Lohisse (belga), nomearia não mais “comunicação de massa”, mas Comunicação Anônima (1969), numa edição francesa que descobri no início dos 1970 em Barcelona e nunca foi editada no Brasil. A pesquisa da produção simbólica na comunicação vai se adensar em fontes como Edgar Morin, Jean Lohisse, Umberto Eco, Hans Magnus Enzensberger, Rolland Barthes, Gabriel Cohn, Gillo Dorfles, Abraham Moles, Eliseo Verón, Bernard Voyenne para citar algumas das vozes renovadoras que se descolam dos paradigmas determinísticos. E esse caldo de contribuições iria desaguar na abertura da dissertação de mestrado na USP, em 1975, base do livro Notícia, um produto à venda, Jornalismo na Sociedade Urbana e Industrial (primeira edição de 1978).

Um ato culminante, encontrar presencialmente o autor de uma obra que se expandia como nunca na década seguinte. Na vinda ao Brasil, em 1980, conversei com Morin em São Paulo e dessa rica interlocução que passava pela reflexão sociológica (publicaria a obra Sociologia do Micro aos Macroplanetário em 1984), que retomava a comunicação coletiva (ou anônima) e que ousava se lançar às espinhosas questões do Método nas ciências humanas, surgiram, inclusive, na inquietude do filósofo, os desafios do porvir (Para sair do século XX, 1981). A sonda de sutilezas sem fim captava então a trajetória “do homem mutilado/dissociado à política unidimensional” (pág. 113 da edição brasileira de 1986). Nosso encontro também teria uma repercussão fundante em minha tese de doutorado em 1986, quando voltei depois de dez anos de exílio político da USP (saíra por força das circunstâncias da repressão em 1975, pouco antes de defender a dissertação de mestrado). A pesquisa de doutorado, Modo de ser, mó’dizer, reúne duas partes – a primeira, do estudo de caso de um bairro de São Paulo, a segunda, a reflexão sobre a interação sujeito-sujeito no processo comunicacional. O que importa aqui é lembrar as marcas do pensador francês, quando examina a entrevista nas ciências sociais numa coletânea de 1973. Além de outros autores paradigmáticos da dialogia que formam os andaimes de minha tese, é também inspiradora a abordagem de Morin quando proponho a entrevista, no Jornalismo, como Diálogo possível (Ática, 1986).

Aliás, não posso esquecer que no diálogo ao vivo do início dessa década, a extraordinária sensibilidade do intelectual me apontou para o que hoje nomeio o Gesto da Arte. Morin virou e disse com todas as letras: quem quiser compreender, no século 21, o que se passou no século 20, terá de ler os romances desta época. Nos caminhos misteriosos das viagens de repórter, esse farol certamente orientou minhas buscas de Povo e Personagem (tese de livre-docência na USP, em 1989). Persegui as marcas identitárias das sociedades de língua portuguesa nas suas literaturas. Trabalhei de 1982 a 1987 em três livros – o dos escritores portugueses, o dos brasileiros e o dos cinco países africanos que adotaram a língua portuguesa nas suas independências. Em Moçambique, um grande poeta – José Craveirinha (1922-1991) – misteriosamente coincidiu com a fala de Morin. Em seu depoimento, desta vez à beira do Índico, arrematou nossa conversa: um povo se escreve no romance. Incrível confluência de mapas simbólicos. Senti também na elocução de ambos o desejo do poeta e o do sociólogo de realizarem ou a narrativa de longo fôlego (romance fundacional, na concepção do escritor Sinval Medina) ou a narrativa confessional/intimista. Edgar Morin não abandonou essa motivação, pois nos presenteou com a exegese do inferno íntimo em Mes démons (1994).

Afeto às manifestações libertárias em todas as expressões da arte, registra sobre elas amor e sabedoria em artigos, opúsculos, coletâneas. Mas é a teoria da complexidade que definitivamente o consagraria entre nós nos anos 1990. Pela ótica da transdisciplinaridade estará presente em muitos seminários como o de Buenos Aires em 1991, Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Para lá também me desloquei por conta da iniciativa que organizara na ECA/USP, um ano antes, reunindo os saberes das ciências humanas, biológicas e da natureza. O tema, A crise dos paradigmas, 1º Seminário Transdisciplinar, deu origem à série de onze livros sob a rubrica Novo Pacto da Ciência. (Estamos celebrando os trinta anos do Projeto Plural na edição em curso do 12º exemplar.) Voltando a Buenos Aires, meu relato no segundo volume desta série – Do Hemisfério Sol (1993) – narra outro contato presencial e trocas epistemológicas com o conferencista Edgar Morin. Ele, como ninguém, compreenderia a síntese do título que dei ao texto que sintetiza o seminário de Buenos Aires: Viver na incerteza e no risco. Lá estavam autores incorporados à minha bibliografia de então como Ilya Prigogine, da Bélgica, mas o inspirador dos paradoxos ocupa um espaço significativo e outra vez me surpreendeu a capacidade de Morin deslocar os significados da complexidade do mundo das ideias para a vida prática. Um verdadeiro encantamento sempre que ele extrai da concretude do cotidiano, as interrogantes do pensador; ou devolve entendimentos racionais para a experiência coletiva, sob forma de guias de comportamentos (como no caso da entrevista nas ciências sociais). No sábado, dia 26 de outubro de 1991, coube a Edgar Morin encerrar o pomposo encontro no Teatro Coliseo: deixou para a plateia lotada um legado de incertezas. Sobretudo as incertezas do conhecimento humano.

As teorias da complexidade, capitaneadas por este instigante líder, fecundaram em solo brasileiro. Destaco dois territórios – a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com a cientista social Maria da Conceição de Almeida; e a da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com o cientista social Juremir Machado. Dois pesquisadores que criaram laços de fidelidade à obra e ao trânsito de Morin no País. Juremir Machado, em 1993, ao apresentar Edgar Morin, numa obra de ensaios que reúne também Beaudrillard e Maffelosi (A decadência do futuro e a construção do presente), sintetiza no título do perfil um dos principais eixos da contribuição do hoje centenário autor: Edgar Morin, o elogio do pluralismo e da complexidade (pág. 11). Das palavras-chave que ecoam na bibliografia contemporânea (livros, teses, artigos), talvez sejam essas as que mais circulam. No entanto, fiz um registro no sétimo volume da série Novo Pacto da Ciência, Caminhos do Saber Plural (1999): há uma árdua distância entre a abstração do discurso no âmbito das ideias e os comportamentos conscientes da mentalidade complexa e plural.

Tomara que a percepção de Edgar Morin, homenageado hoje, aos cem anos, capte em seu fino radar o quanto nos inspira na aposta do contínuo aperfeiçoamento nesse escaldante laboratório da razão complexa, sensibilidade solidária e ação transformadora.


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