Mulheres e poesia se entrelaçam em nova edição do “Boletim 3×22”

Publicação da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP explora a diversidade da subjetividade feminina

 21/07/2021 - Publicado há 3 anos
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Fachada da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, que publica o Boletim 3×22 – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

O novo número do Boletim 3×22 é uma paisagem de subjetividades femininas tecida pela poesia. A publicação da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP continua, neste sexto número, a missão de apresentar debates centrais da contemporaneidade, costurando-os em uma linha que integra o marco da Independência do Brasil (1822), passando pela Semana de Arte Moderna (1922) e chegando ao bicentenário da Independência, em 2022.

“Cada escolha feita nesta curadoria foi um fragmento, uma dobra recortada, como inevitavelmente deve ser um recorte temático”, escreve no editorial Bruna Martins, uma das editoras da publicação. “Buscou-se recolher subjetividades femininas atentando tanto para quem fala quanto de quem ela fala. Este boletim é uma soma parcial de dobras textuais que, com as singularidades destas, pretende atravessar a diversidade da existência humana sob a identidade de mulheres cis, trans e travestis.”

Costurando a edição, versos de autoria feminina batizam as seções. É o caso de Refazer o Caminho do Fio Entre os Furos, de Francesca Cricelli, que reúne textos dedicados a Guita Mindlin e Gilda de Mello e Souza escritos por suas filhas, Betty e Marina, respectivamente. Em certo sentido, conforme escreve Bruna, a homenagem se amplia também a todas as professoras, funcionárias e estudantes que fazem parte da USP.

Capa da recém-lançada edição número 6 do Boletim 3×22 – Foto: Divulgação

“Apesar de sua modéstia, Guita é central na formação e preservação da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, participando e se interessando por adquirir edições antigas, escolhendo ser a encadernadora e restauradora dos livros raros durante décadas. Tornando-se doadora, sem hesitar”, escreve a antropóloga Betty Mindlin. “Hoje a oficina de restauro da BBM na USP tem seu nome. Nada tão importante para preservar os livros como o restauro.”

Se Viverdes em Mim, Vereis Até Onde me Estendo, verso de Hilda Hilst que integra o livro Iniciação do Poeta, inclui a transcrição parcial de uma palestra realizada por Ana Paula Simioni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A questão que Ana Paula elabora tem como vértice a presença das mulheres modernistas no cenário artístico brasileiro, com destaque para Anita Malfatti.

Falando sobre as narrativas criadas em torno de Anita e Tarsila do Amaral, a docente aponta: “Ambas foram tratadas pela historiografia a partir de duas perspectivas, ou dois termos ou dois olhares: no caso da Anita, no geral, ela foi vista como uma ‘vítima’ e no caso da Tarsila do Amaral, ela foi vista como uma ‘musa’”.

Também dialogando com o Modernismo, a seção Eu Sei o Bicho Que me Come Dentro/ Eu Sei Eu Sou Uma Mulher, batizada com versos de Nina Rizzi, traz um texto da doutora em Sociologia pela USP Isabelle Anchieta. Aqui, a poesia se une às palavras da pesquisadora através do resgate do conceito de antropofagia.

“O que a retomada do tema do canibalismo na arte contemporânea brasileira diz sobre a atualidade e mesmo sobre os brasileiros?”, indaga Isabelle no início do texto, um excerto de seu livro Imagens da Mulher no Ocidente, publicado pela Editora da USP (Edusp) em 2019. “Nas imagens vemos ressurgir as índias tupinambás canibais que povoaram o imaginário europeu e americano na passagem da Idade Média para a Moderna. Nelas erotismo e violência perturbam-se e sua oscilação nos deixa entrever ambiguidades conciliadas em nosso tempo.”

Que Amem as Travas Também, trecho da canção Oração, de Linn da Quebrada, traz dois textos. O primeiro é o Manifesto Traveco-Terrorista, da cantora, compositora e escritora Tertuliana Lustosa. O outro é um trecho de uma entrevista feita com a dramaturga, atriz e diretora Renata Carvalho. Como aponta Bruna no editorial, as contribuições das duas artistas colocam em questão elementos do movimento modernista, confrontados agora com problemáticas da arte contemporânea no que toca o reconhecimento da produção de mulheres trans e travestis.

“O traveco-terrorismo, a despeito das censuras do academicismo, autodeclara-se como arte brasileira em guerra pela sobrevivência”, anuncia o terceiro ponto, ou “Bafo 3”, do Manifesto. “Após o medievo, quem atinge trinta e poucos anos de expectativa de vida? No Brasil, 35 anos é a expectativa de vida da travesti.”

A seção seguinte avança para as subjetividades das mulheres negras. É um trecho de Conceição Evaristo que dá o nome, A Noite Não Adormece nos Olhos das Mulheres. A representação das mulheres negras na arte e o enfoque dado às obras literárias das autoras negras são os temas, respectivamente, dos textos de Clélia Prestes & Maria Lúcia da Silva e de Fernanda Miranda.

Em Ficção: Fértil Como Terra Preta, Fernanda, que é professora da Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará (Unifesspa) e doutora pela USP, apresenta alguns pontos fundamentais de sua tese, defendida em 2019. “O estudo nasceu de um susto, ou melhor, de uma constatação”, conta a docente em seu artigo. “Após um autoexame na minha memória de leitora, tentei responder à pergunta: quais são os romances brasileiros que já li cujas autoras são negras? Silêncio. Sim, o silêncio respondeu, impositivo. Foi da constatação do silenciamento que parti, pois naquele primeiro exercício eu apenas conseguia lembrar de cinco romances de autoras negras em toda a vasta literatura brasileira de que eu já havia tomado conhecimento, não só na minha formação em Letras, mas em toda a minha trajetória de leitora.”

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Carolina Maria de Jesus foi a escolhida para nomear a seção seguinte, com os versos iniciais de um poema incluído em Quarto de Despejo: Não Digam Que Fui Rebotalho,/ Que Vivi à Margem da Vida. É assim que Carolina apadrinha três textos que investem na relação das mulheres com a escrita: O Livro no Novelo das Contradições Sociais: Materialidade do Invisível, da mestranda pela USP Maria Teresa Mhereb, Mulheres de Imaginação Ardente e Leitores Terríveis, da professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Luciana Carvalho Fonseca, e O Ofício de Escrever, uma entrevista com a escritora paraense Paloma Franca Amorim.

“As mulheres estão na base da pirâmide profissional do mercado editorial, realizando parte expressiva do trabalho fundamental, sem o qual não se faz um livro”, escreve Maria Teresa. “São elas também que mais leem e incentivam a leitura no País, e, no entanto, são elas que menos publicam suas obras autorais e suas traduções, e são elas também que estão menos representadas entre as protagonistas dos romances nacionais.”

Encerra a publicação a seção Marca de Mito Embotável/ Mistério Que a Tudo Anuncia, versos de Beatriz Nascimento. O mito conversa, aqui, com a transcrição de duas entrevistas. Uma feita com Giuliana Ragusa sobre as mulheres na Antiguidade clássica e outra sobre as mulheres na América portuguesa, realizada com Maria Clara Paixão de Sousa e Vanessa Martins do Monte, as três docentes da FFLCH.

De acordo com Bruna, conforme escreve no editorial, esse sexto número do Boletim 3×22 é uma “rede cosida de mulheridades dialógicas e tensionáveis, permitindo o debate entre seus próprios fragmentos, pois qualquer pretensão de generalizar uma identidade homogênea seria inverossímil e falha”. Multiplicidade pautada desde o início na coleção da BBM, que já dedicou edições às pluralidades indígenas e ao quilombismo, entre outros temas.

O Boletim 3×22, publicação da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, está disponível gratuitamente neste link.

 


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