João Steiner: cientista brilhante foi também um professor amado por todos

Por Luiza Caires, jornalista e editora de Ciências do “Jornal da USP”

 11/09/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 12/09/2020 as 19:38
Luiza Caires – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
A morte nesta quinta-feira, 10 de setembro, do astrofísico João Steiner, professor titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, atingiu a todos que conhecem sua importância para o desenvolvimento e reconhecimento da astronomia brasileira. Mas sua perda está longe de ser sentida apenas pela comunidade acadêmica e pelo núcleo familiar. Qualquer pessoa que tenha tido contato com o ser humano João Steiner – ainda que desconheça seus feitos como cientista – tem hoje um nó na garganta.

Estou no grupo que teve a chance de conhecer um pouco das duas faces – pessoal e profissional, que se misturavam neste grande ser humano que ontem foi tirado da nossa convivência. Durante quatro anos (começamos exatamente em setembro de 2016), todos os meses, eu ia até o IAG para gravar com ele sua coluna “Entender Estrelas”, veiculada na Rádio USP. A decisão de ir gravar pessoalmente, não pelo telefone ou aplicativo, como fazemos para algumas colunas, logo se mostrou uma escolha muito feliz para mim. Era um privilégio passar um tempo na companhia daquele homem que emanava amor pelo conhecimento e por partilhá-lo. Posso apostar que qualquer jornalista que até então torcesse um pouco o nariz para assuntos científicos, e fosse passar algumas horas entrevistando o professor, sairia de lá empolgado pela astronomia.

João Steiner no dia em que foi revelada a primeira foto de um buraco negro, em 10 de abril de 2019 – Foto: Luiza Caires

Era isso o que ele fazia: nos contaminava com sua energia vibrante, um entusiasmo inabalável. Eu nunca vi o professor Steiner desanimado. Um pouco cansado, uma ou outra vez; desanimado, jamais. Às vezes, era eu quem não estava nos melhores dias e ia até lá gravar, já sabendo do poder terapêutico daquela uma hora, hora e meia, que passaria com o professor – e nunca me decepcionava. Quantas aulas de astronomia eu tive com o gravador desligado. Ele parava, pegava papel e caneta, e começava a esboçar esquemas sobre os fenômenos de que íamos falar na gravação. Ou abria o computador e começava a procurar imagens para me mostrar.

Muitas vezes eu propunha os temas para a gravação em cima da hora, como todo jornalista apressado que às vezes se enrola no tempo. Ele imprimia o artigo que sugeri abordar, batia o olho e começava a falar fluentemente, como se estivesse familiarizado com o tópico há vários dias. A mente veloz e dinâmica deste homem nos seus 70 anos não cansava de me surpreender.

Com o gravador desligado, também, é que conheci um pouco da face humana do professor. Era quando, além de algumas conversas animadas sobre ciência, política, ou qualquer outro assunto, ele me contava as histórias da carreira e alguns detalhes da vida pessoal.

Certa vez, após uma de suas orientandas deixar a sala enquanto eu chegava para a gravação, o professor Steiner me contou que era muito procurado por alunas mulheres para que as orientasse, em particular jovens em iniciação científica. Pesquisadoras das áreas de exatas podem falar melhor do que eu das dificuldades que vivem no meio devido ao gênero. Ser o orientador preferido delas não quer dizer pouco. Significa a boa fama que adquiriu, e que se espalhou nos bastidores, pelo respeito e humanidade – sem paternalismo – com que as tratava. Ele talvez nem percebesse essa ser a causa da procura (ou se percebia, delicado como era, não falaria). Não contou isso envaidecido, e sim com a naturalidade de quem achava que só fazia o mínimo.

Educação era um dos seus temas mais caros. Quando falava do curso para professores do ensino médio que coordenava há dez anos ou das palestras que dava em escolas, os olhos brilhavam. Em mais de uma ocasião, fez questão de me mostrar o mapa que apresentava todas as cidades do Brasil onde havia professores formados pelo curso. “Muitos professores de ciências não têm conhecimento básico de astronomia, e a gente precisa mudar isso”, falava, preocupado.

Ficou conhecido pelas descobertas científicas, mas era desses projetos que ele tinha mais orgulho. Quantos pesquisadores como ele, conhecidos internacionalmente, e em cuja carreira não faltassem honrarias e reconhecimento, parariam tudo que estavam fazendo para ir até uma escola pública falar a alunos que pouco ou nada conheciam sobre astronomia?

Tendo galáxias e os buracos negros como algumas de suas áreas de pesquisa, era conhecido, para além do brilhantismo como cientista, por sua grande capacidade didática: um verdadeiro professor e comunicador, capaz de falar de astronomia para todo tipo de público.

No nosso último encontro (ouça a coluna no player abaixo), agora virtual por causa da pandemia, ligou a câmera e me mostrou seu sítio, em Santa Catarina, um pequeno paraíso na natureza, onde parecia se encontrar. “Quando tudo isso passar, você vem aqui conhecer!”, me convidou, animado. Não deu tempo. Assim como não houve como acompanhar em vida alguns fenômenos astrofísicos que ele aguardava ver. Mas a foto do buraco negro e a detecção de ondas gravitacionais, isso ele pode assistir, quase com a alegria de uma criança descobrindo o mundo. Não era pouco para alguém que teve que ouvir ironias de colegas mais experientes que sequer acreditavam na existência de buracos negros quando ele defendeu o mestrado sobre o assunto, décadas atrás, ter a oportunidade de viver o dia em que a ciência avançou a ponto de “fotografar” esse objeto.

Também não deu tempo de dar um abraço físico no meu querido professor. Só “abraços” por e-mail e telefone. Por respeito e timidez, era sempre a mão que eu estendia quando o encontrava. Talvez eu tivesse feito diferente se soubesse que ele iria embora tão rápido. Mas isso não importa tanto agora. O afeto mútuo que nutríamos era real, e já é privilégio suficiente ter sido iluminada pela sua presença durante esses anos.

O privilégio da convivência

A seguir, alguns depoimentos de colegas e alunos, coletados pelo IAG, que também tiveram a sorte de conviver com o professor João Steiner, em sua passagem por este planeta, e serão eternamente gratos por isso.

Laerte Sodré Junior, professor titular do Departamento de Astronomia do IAG:
“Esta é uma grande perda pessoal. Nós – João [Steiner], Augusto [Damineli] e eu – começamos a faculdade juntos, em 1970, e desde então compartilhamos da evolução do País, da Universidade e da astronomia brasileira. Dizem que algumas pessoas são ‘forças da natureza’, e João definitivamente se encaixa nesta definição. Ele era uma das pessoas mais energéticas e determinadas que eu já conheci e, certamente por esses motivos, ele deixa um legado invejável para nossa Astronomia, incluindo os telescópios SOAR e Gemini e, mais recentemente, a participação de São Paulo no GMT. Ele também deixa uma legião de jovens cientistas que orientou e supervisionou. Além de nossas memórias, ele continuará vivo nos laboratórios que ajudou a construir e nas pessoas que ajudou a formar.”

Augusto Damineli, professor titular do Departamento de Astronomia do IAG:
“João vivia e transpirava ciência: como pesquisador, orientador, administrador e gestor científico, professor e divulgador. É impossível resumir seu curriculum. Sua fama atraiu muitos jovens para a área de Astronomia. Formou uma geração de mestres e doutores de primeira linha, alguns deles com emprego no exterior.

Como educador, sempre levantou o entusiasmo dos alunos. Suas aulas do curso Astronomia uma Visão Geral, do IAG-USP, foram gravadas pela TV Cultura e têm mais de 1 milhão de downloads. Alguém precisa desvendar o segredo de como um curso de nível universitário pode atingir tamanha audiência no Brasil. Ele estava mantendo um curso semipresencial de formação de professores de grande sucesso no Estado de São Paulo. Seu porte grande de alemão podia até despertar um certo receio nos mais desavisados, mas sabia fazer crianças pequenas felizes, principalmente bebês de colo.

Os indígenas brasileiros dizem que, quando uma pessoa morre, ela vira uma estrela. Não se assuste se encontrar uma nova estrela de PRIMEIRA MAGNITUDE no céu.”

Claudia Lucia Mendes de Oliveira, professora titular do Departamento de Astronomia do IAG:
“João trabalhou intensamente para fazer do Brasil uma liderança na comunidade astronômica internacional. Ele foi o principal condutor de nossa participação nos consórcios SOAR, Gemini e, é claro, GMT. É uma perda imensa para as comunidades astronômicas brasileira e internacional.”

Pedro Leite da Silva Dias, diretor do IAG e professor titular do Departamento de Ciências Atmosféricas do IAG:
“João Steiner sempre me impressionou pela coragem de enfrentar grandes desafios. Teve um papel marcante na evolução do Departamento de Astronomia do IAG e da astronomia brasileira. Sua contribuição não foi restrita à astronomia. Contribuiu para que o IAG se aproximasse na sociedade através da agregação de empresas privadas em projetos científicos e estimulou a criação de cursos de especialização para professores das escolas públicas, além de sua enorme contribuição científica. Foi sempre uma voz importante na elaboração de planos estratégicos e com visão de futuro. Perdemos um grande defensor e divulgador da ciência e tecnologia. Seu exemplo está impregnado nos seus colegas e alunos e será passado para a frente.”

Roderik Overzier, professor do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro:
“Desde que cheguei ao Brasil em 2013, ninguém fez mais para me aceitar na família científica do que João. Ele era meu amigo, um mentor e ‘parceiro no crime’, de quem sentirei muita falta. Não concordamos em todos os planos ou abordagens, mas compartilhamos totalmente a filosofia de que qualquer dia em que limites artificiais não sejam empurrados é um dia roubado da próxima geração de cientistas brasileiros. O grande carvalho da astronomia brasileira caiu, e estaremos perdidos sem sua sombra.”

Tutores e equipe do curso EAD – Pedro Beaklini, Daniel May, Felipe Navarete, Larissa Takeda, Luis Kadowaki, Catarina Aydar, Helio Perottoni, Phillip Galli, Beatriz Fernandes, Daniele Ronsó e Maria Teresa Lopes:
“O professor João Steiner também foi atuante na busca pela melhora da educação básica. Nos últimos anos, se dedicou na elaboração de cursos semipresenciais voltados ao aperfeiçoamento da docência. Primeiramente em parceria com outros institutos da USP, como a EACH e o IF, o curso foi remodelado nos últimos três anos para aproveitar o extenso material de aulas gravadas pelo professor, todas de excelente qualidade. João buscou financiamento e tutores entre os pós-doutores, passando para a nova geração de cientistas a importância do trabalho com a educação como uma forma de contribuição para sociedade. Participava com muito entusiasmo e carinho em tudo que era relacionado ao curso; quando presente nos encontros, servia de motivação e inspiração para aqueles que estão à frente da educação: os professores. O carinho por ele é relatado por todos que fizeram o curso.”

Catarina Aydar, aluna de mestrado:
“Nesta despedida, gostaria de expressar minha profunda admiração pelo professor João Steiner, agradecendo por tudo o que ele me ensinou e fez por mim, além de tudo o que ele fez pela comunidade científica brasileira. Quando estava na escola e decidi que queria estudar astronomia, quem me confirmou esse interesse foi o professor, em vídeos no YouTube que tornam um curso de astronomia acessível para qualquer pessoa que tenha interesse e internet.

Depois, na faculdade, conheci Steiner pessoalmente nas aulas. Seu fascínio pelo Universo era tão contagiante que, na primeira matéria que fiz no IAG, já estava pedindo para fazer iniciação científica com ele. Por fim, entrei em contato com João, que me orientou e me apoiou nos últimos cinco anos abrindo muitas portas e me ensinando muito mais do que todo o conhecimento científico que ele passou. Fico triste pela perda, porque ainda queria poder trocar muito mais com ele, entender melhor como funcionam esses ambientes nas diferentes escalas em que nos situamos. Mas agora ele segue sua jornada e talvez se transforme em um brilhante quasar que poderemos admirar a distância. Serei eternamente grata por tudo o que pudemos compartilhar; por ter sido mais que orientador e professor, mas também parceiro e amigo, sempre atento ao nosso lado humano. Agradeço por todas as contribuições para a comunidade científica, por ser esse exemplo de integridade e sabedoria. Vá em paz, João, que por aqui continuaremos nos esforçando para dar continuidade ao seu legado.

Obrigada por tudo, de sua aluna Catarina.”

Daniel May, pós-doutor em Astronomia:
“Perdemos hoje aquele que fez do País uma referência mundial em astronomia, graças à sua dedicação ímpar e às pessoas que ele inspirou. No momento não consigo imaginar uma única pessoa que faria todo o trabalho atualmente conduzido por ele: desde pesquisas importantes para a astrofísica, seu grande papel e carisma como divulgador da ciência e a herança deixada por nos fazer sócios do primeiro grande telescópio para esta década. Mas consigo imaginar, no entanto, que a inspiração que nos causa fará este legado continuar nas mãos de todos que conheciam seu trabalho.

Como ele costumava dizer: ‘Todos nós somos alfabetizados a ler e a escrever na escola, por que não sermos também alfabetizados cientificamente, para sermos melhores cidadãos?’.

E assim brilham mais as estrelas, nesta hora da sua partida. Obrigado, João.”

Entender Estrelas

A última coluna do professor Steiner foi ao ar nesta sexta, 11 de setembro – ele falou sobre as evidências encontradas de que a supernova 1987A abriga uma estrela de nêutrons. Ouça na íntegra:

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