O centenário de “Pelo telefone”

José Geraldo Vince de Moraes – FFLCH

 27/08/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 30/08/2016 as 11:02
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José Geraldo Vince de Moraes é professor do Departamento de História da FFLCH – Foto: Arquivo pessoal
O ano de 2016 completa o centenário da canção Pelo telefone, de Ernesto dos Santos, o Donga (1889/1974-RJ) e Maurício de Almeida (mais conhecido como Peru dos Pés Frios). É bastante curiosa e polêmica a trajetória desta canção: ela envolveu discussões em torno da autoria, o ano de seu aparecimento, o tipo de gênero que ela apresentava e seu papel pioneiro na cultura fonográfica.

De qualquer modo, a historiografia da música popular brasileira estabeleceu a gravação da canção realizada em 1917 como o primeiro registro fonográfico de um samba, consagrando-a, por isso, como um marco de nossa história cultural. Porém, na verdade, a partitura manuscrita para piano de Pelo Telefone foi registrada oficialmente na Biblioteca Nacional em 27/11/16 e a primeira edição para divulgação comercial apareceu nas lojas em 16/12/16.

Em janeiro de 1917 foram realizadas as três gravações pela Casa Edison, baseadas nestes registros oficiais e públicos. A primeira e a terceira foram apenas gravações instrumentais, realizadas, respectivamente, pela Banda Odeon e pela Banda do 1o Batalhão da Polícia da Bahia.

A segunda gravação, interpretada por Baiano e acompanhada somente de cavaquinho e violão, diferente das outras duas, foi a que atingiu grande repercussão no carnaval carioca daquele ano, penetrando na memória fluminense e posteriormente no imaginário nacional. Desta maneira, o que passou a valer de fato foram as gravações e o sucesso no carnaval de 1917.

Há uma série de fatores apresentados pela memória e pela historiografia para justificar a presença de Pelo Telefone como marco da moderna música popular urbana. O primeiro deles está relacionado exatamente com o fato de Donga registrar a partitura da canção na Biblioteca Nacional.

Agindo assim ele ultrapassava os tradicionais limites da criação coletiva e anônima da música popular da época. Sua atitude antecipava a postura do “compositor moderno”, que identifica a autoria individual para assegurar seus direitos sobre a composição e sobreviver de sua arte.

De qualquer modo, a historiografia da música popular brasileira estabeleceu a gravação da canção realizada em 1917 como o primeiro registro fonográfico de um samba, consagrando-a, por isso, como um marco de nossa história cultural. Porém, na verdade, a partitura manuscrita para piano de Pelo Telefone foi registrada oficialmente na Biblioteca Nacional em 27/11/16 e a primeira edição para divulgação comercial apareceu nas lojas em 16/12/16.

Além disso, o registro da canção como um samba e a subsequente indicação do gênero no selo do disco como “samba carnavalesco”, fato raro no início do século 20, também são aspectos importante, já que o samba urbano ainda não era um gênero muito bem definido e sem grande atração do ponto de vista comercial.

Deste modo, em Pelo Telefone estariam decantados os elementos da moderna música popular que somente apareceriam de modo evidente na virada dos anos 20/30: o gênero samba urbano, composto por autor conhecido, gravado em fonogramas, com objetivo comercial e que obtém ampla divulgação.

Portanto, essa canção teria dado início a uma nova fase da produção musical no País e, por isso, se tornou uma referência na história da música popular no Brasil.

Todavia, este processo foi um pouco mais complexo e repleto de polêmicas entre os contemporâneos dos eventos, gerando também controvérsias na historiografia. A autoria do samba, por exemplo, foi questionada por inúmeros compositores contemporâneos de Donga.

Eles alegavam que a parte central da canção surgiu nos tradicionais improvisos em reuniões na Casa da Tia Ciata (tia baiana, cuja casa era núcleo de cordões carnavalescos, festas, encontros de partido alto, etc.). Deste modo, Donga teria se apropriado de uma criação coletiva, anônima, registrando-a como sendo apenas dele.

Na realidade esta era uma prática muito comum à época em que, segundo Sinhô (1888/1930-RJ), as composições eram “como passarinho; de quem pegar…”. Além disso, o refrão da canção também foi tomado de conhecida canção folclórica (Olha a rolinha/Sinhô, sinhô/Se embaraçou/Sinhô, sinhô …).

Há uma série de fatores apresentados pela memória e pela historiografia para justificar a presença de Pelo Telefone como marco da moderna música popular urbana. O primeiro deles está relacionado exatamente com o fato de Donga registrar a partitura da canção na Biblioteca Nacional.

Parece que a motivação central da composição foi uma crítica bem-humorada deste grupo ao chefe da polícia carioca que combatia os jogos de azar na cidade: por isso a letra original dizia “O chefe da polícia/Pelo telefone/ Mandou avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar”. Porém, ao registrar a letra, Donga subtraiu a crítica à polícia e mudou para “O chefe da folia”. Este autêntico quebra-cabeça melódico e poético teria sido organizado e recomposto pelo jornalista e carnavalesco Maurício de Almeida, o Peru dos Pés Frios, que ganhou coautoria da composição.

Já a condição de “primeiro samba gravado” é questionada por parte da historiografia. Infelizmente a rica e diversificada história da indústria e da cultura fonográfica no Brasil, entre o final do século 19 e o início do século 20, continua repleta de silêncios e incógnitas, impedindo o estabelecimento de um quadro mais amplo e esclarecedor.

De qualquer modo, se sabe que no início do século 20, antes de Pelo Telefone, outras canções foram gravadas com a designação de “samba” no título ou no selo do disco. No entanto, para muitos analistas – e também para compositores da época – nenhuma dessas canções poderia ser identificada como samba, inclusive Pelo Telefone, estando todas elas mais próximas ainda do maxixe.

O samba urbano moderno amadureceria somente nos anos 30, sintetizado pela chamada Turma do Estácio (de Sá), fundadora da primeira “escola do samba” (Deixa Falar) e, sobretudo, por Noel Rosa.

Esta nova forma de organizar a poesia, melodia e ritmo foi amplamente divulgada pela indústria radiofônica, que se expandiu extraordinariamente nessa década, relativizando os sucessos fonográficos anteriores, como Pelo Telefone, que se tornou modelo do “antigo samba” e da “velha guarda”.

Porém, a trajetória e o alcance da canção tomaram destinos inusitados, embaralhando ainda mais sua compreensão e análises. Vinte e um anos depois ela reapareceu de maneira oculta e imprevista entre os registros fonográficos recolhidos em Belém do Pará pela Missão de Pesquisas Folclóricas, organizada por Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938.

Os membros da Missão que fizeram a recolha e aqueles que trabalharam logo posteriormente com a organização do material não perceberam que o grupo de Bumba-meu-boi Pai de Campo, no bairro do Juruna, usava a conhecida melodia de Pelo Telefone (“o chefe de polícia pelo telefone manda avisar…”) e a trataram como autêntica produção folclórica. Tudo indica que o grupo folclórico se apropriou e se reutilizou à sua maneira da conhecida frase da canção de Donga, revelando a influência dos meios de comunicação à época.

Como se percebe, o processo de composição, a compreensão analítica e a trajetória de Pelo Telefone foram bastante controversos. Toda essa situação deu-lhe uma presença bastante ambígua na história da cultura e da música popular no Brasil: é um marco importante, que, como todo símbolo, tende a se consolidar, mas que, no entanto, se mantém em movimento.

 

 


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