O devir da publicidade

Por Clotilde Perez, professora titular de Semiótica e Publicidade da ECA/USP

 03/04/2020 - Publicado há 4 anos
Clotilde Perez – Foto: Arquivo pessoal

 

Nestes quase 20 dias de isolamento social, retomamos alguns hábitos, percepções e sentimentos que andavam vagando perdidos por aí. Ligar para os amigos e saber como estão, retomar a leitura como parte do dia, almoçar e jantar à mesa com pessoas amadas, tarefas domésticas esquecidas no passado presentificadas pela necessidade. No entanto, é no plano das percepções e sentimentos que notamos os maiores impactos, desde a certeza da necessidade do convívio social para o nosso equilíbrio psíquico até reflexões que nos dão a segurança de que só o Estado forte nos salvará; o valor da imprensa séria, institucionalizada e comprometida com a informação correta; o sentido das universidades de pesquisa para a sociedade, solucionando problemas concretos, além de formar melhores cidadãos; o valor de ter o SUS – Sistema Único de Saúde, mesmo sendo um país continental; a certeza de que pensarmos e atuarmos juntos faz mais sentido do que o isolamento ensimesmado.

Neste cenário de confinamento, nossa presença diante das telas foi multiplicada. Quer porque fomos empurrados para o trabalho, quer por necessitarmos de informação para acreditar no que está acontecendo no mundo e para saber o que fazer para se proteger e proteger a todos. Criou-se um misto de constante inquietação acerca dos valores fundamentais que regem a nossa vida, com o pragmatismo avassalador de uma peste, que atua no real do corpo, muito concretamente, ainda que invisível. As pessoas estão ficando doentes e morrendo.

Como pesquisadora da área de publicidade e consumo, tendo a semiótica como fundamento do pensar, pesquisar e ensinar, tem sido inevitável a observação guiada à análise, das manifestações publicitárias nos diferentes meios, em particular na TV e nas redes sociais. Não quero me deter aqui nas campanhas públicas, como a divulgada pelo Governo do Estado de São Paulo emblemada com #ficaemcasa com qualidade de forma e conteúdo necessário ou o necrofilme #oBrasilnãopodeparar”, publicado no Instagram da Secom – Secretaria de Comunicação da Presidência da República, que revela a crueldade e o descaso com as pessoas menos favorecidas, estimulando que voltem a trabalhar para que o Brasil não pare. Aliás, o obscurantismo do governo federal segue a toada de sempre, até agora não sabemos quem produziu tal filme e a retirada foi executada pelas plataformas Twitter, Instagram e Facebook, à revelia dos produtores “ocultos”.

Quero me ater às campanhas das marcas em diferentes segmentos da cultura (i)material. O que estão comunicando? Quais sentidos são produzidos pelas mensagens? Além daquelas publicidades que já estavam previstas no planejamento de mídia de agências e veículos, com lançamentos de produtos, novidades e pseudonovidades, que surgem nas telas e nos causam estranhamento pela total inadequação, como o lançamento de um novo modelo de carro de marca já existente (quem se interessaria por um novo carro agora? Ou ainda, qual a relevância de ter um novo modelo de carro?), há todas as outras que buscaram contemplar o contexto da pandemia na temática de suas campanhas, engajadas no tom da publicidade de causa, e aí há muitas diferenças em conteúdo, forma e linguagem adotadas.

Em um esforço de analisar e sistematizar essas ocorrências, encontramos marcas oportunistas, demagogas, solidárias e ativistas. Evidentemente as oportunistas são as mais execráveis, pois objetivam tirar proveito da situação de medo e insegurança para vender mais, como um banco que divulga um seguro de saúde com descontos para médicos. O que de fato quer dizer em sua mensagem revestida de vantagem? Você médico, que está com medo porque está na linha de frente da pandemia – logo, com medo de morrer –, adquira um seguro – um verdadeiro absurdo! Vinda de onde essa mensagem? Já sabemos: da face mais nefasta do capitalismo improdutivo: os bancos.

Já as demagogas buscam agradar e manipular os cidadãos, com argumentos apelativos e fortemente emocionais, mas também visando ao proveito próprio com a situação de caos e incertezas. Em tom nostálgico, buscam apelos ao convívio social e, principalmente, à família reunida, no melhor caminho agradar para manipular – olha como “eu” (marca) sou querida! Olha como os tempos eram bons comigo (marca)!

As marcas solidárias se mostram mais sensíveis, informando sobre seus serviços e produtos, agora alterados diante das circunstâncias de isolamento e combate à expansão do vírus e anunciam acesso facilitado, investimentos para adequação de infraestrutura física e tecnológica, alteração de jornada de trabalho, com benefícios diretos para os funcionários, entre outras medidas que demonstram o posicionamento de compreensão dos dramas sociais e ações concretas para minimizar a dificuldade que é de todos.

Já as campanhas publicitárias de marcas que classifico como ativistas são raras, até o momento apenas uma delas se manifesta responsável e implicada em ações reais que poderão fazer a diferença, assumindo inclusive as incertezas de suas decisões, o que é bastante razoável no momento. Por meio da publicidade, informa o compromisso de não demitir nenhum funcionário durante a epidemia, reverte parte das fábricas para a produção de álcool em gel e sabonetes que estão sendo doados, prorroga boletos de pagamento, garante remuneração da força de vendas, entre outras; ações concretas e necessárias, de interesse amplo porque beneficiarão sua rede de relações e a sociedade em geral em uma ecologia virtuosa.

Quanto à forma e à linguagem, a publicidade em tempos de coronavírus está bastante precária. Anúncios all type (só com textos) são a ampla maioria, pouca exploração de recursos de edição, trilhas sonoras envolventes, recursos gráficos que encantam e chamam a atenção. Por um lado, o empobrecimento na linguagem revela a pressa em comunicar, mas, por outro, a provável produção amadora de departamentos de marketing trabalhando sob pressão e insegurança quanto a sua própria existência.

O motor da publicidade é o estímulo à compra e adesão, e, na condição extrema em que vivemos, a urgência é pela sobrevivência nas condições possíveis e, preferencialmente, com o mínimo de desembolso porque nunca foi tão válida a máxima popular “não sabemos o dia de amanhã”. Olhares assustados como os de alguns ministros deste governo, em particular o da Justiça e o da Economia, de banqueiros e empresários, revelam o drama da falência de seus princípios mais fundamentais: tudo o que acreditavam – acúmulo de riqueza e poder – está agora em xeque. Empresários guiados pela exploração de seus colaboradores, mas com posturas trend, agora deixam as máscaras cair e não têm vergonha de demitir centenas de pessoas, mesmo diante do mais dramático cenário de sofrimento já visto desde a Segunda Guerra Mundial. Esses empresários e suas marcas ocas não podem ser esquecidos, demandam nossa atuação como consumidores e pesquisadores conscientes.

A publicidade de causa, que se caracteriza pelo vínculo de uma marca a alguma questão social sem, no entanto, prescindir de seus objetivos mercadológicos, caso contrário seria publicidade social, tem, no contexto atual, seu cenário mais favorável. A adesão à causa de prevenção e combate à pandemia do coronavírus tem sido o tom, no entanto, poucas conseguem sensibilizar, gerar engajamento e, menos ainda, criar consciência que motive a transformação social de fato.

O futuro da publicidade está em aberto e os indícios não são os melhores até porque o setor já vinha demonstrando desgaste de modelos e questionamentos de posturas inadequadas cristalizadas, há pelo menos quatro décadas. A publicidade clássica, aquela que comunica um produto, reduz as interdições de acesso – mesmo que hipoteticamente – e vende soluções definitivas de forma inconsequente e autocentrada, está agonizando. A publicidade se perdeu na soberba do ganho fácil (para os donos de agências), na promoção da risada inconsequente e no total descaso com os princípios elementares da cidadania. Promoveu preconceitos, objetificou a mulher, imbecilizou a criança, ocultou idosos, negros e pobres, estimulou o narcisismo jovem, reforçou estereótipos masculinos contribuindo para o aprisionamento em posturas sexistas… Mas, se a criatividade sempre foi a mola propulsora da publicidade, é agora a criatividade implicada que a resgatará. Criatividade implicada na construção de melhores valores sociais, responsável e consciente de seu lugar na dinâmica das relações sociais.

Em pesquisa feita no mês de março deste ano, pela Kantar Thermometer, com o objetivo de revelar “O que os brasileiros esperam das marcas durante a pandemia”, fica evidente a expectativa de que: a) as marcas deem exemplo e guiem a mudança (25%); b) sejam práticas e realistas e ajudem os consumidores no dia a dia (21%); c) ataquem a crise e mostrem que ela pode ser enfrentada (20%); d) usem seu conhecimento e informem (18%); e) ajudem a reduzir a ansiedade e entendam as preocupações dos consumidores (11%); e f) sejam otimistas e pensem de forma não convencional (3%). O que esta pesquisa revela é que nós, consumidores, queremos ações objetivas das marcas; basta observar os verbos: dar exemplo, guiar, atacar, mostrar, usar, ajudar, reduzir…

É urgente a transformação da publicidade e do posicionamento das marcas, ainda mais no Brasil, um país subdesenvolvido, com abismos sociais que apartam os poucos bilionários e os milhões de desvalidos, e que tem no consumo uma possibilidade de expressão da identidade e da cidadania, no sentido essencial de pertencimento. Se a publicidade no Brasil foi abolicionista, palavras de Gilberto Freyre, por que agora não poderá ser cidadã? Aquela publicidade que se mostra implicada com a pessoa, sem perder os objetivos mercadológicos que a originam. Difícil? Certamente. Utópico? Talvez. Mas o prazer e o sentido de existência decorrentes de fazer parte desta transformação serão extasiantes.


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