China: decifra-me ou te devoro

Por Luiz Roberto Serrano, superintendente de Comunicação Social da USP

 07/10/2019 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 07/11/2019 as 17:42
Luiz Roberto Serrano – Superintendente SCS USP

Na comemoração dos 70 anos da Revolução Chinesa, neste último dia 1º de outubro, o noticiário, aqui no Brasil, concentrou-se na enorme pompa e grandiosidade da demonstração do poderio bélico do país no desfile presidido pelo todo-poderoso Xi Jinping em contraste com a forte repressão policial às manifestações libertárias em Hong Kong, que ainda resiste ao autoritarismo do regime de Pequim.

Como registro, a contraposição valeu, mas nem de longe ilumina toda a complexidade que envolve a evolução da China de uma economia agrária anêmica e esfacelada para, em 70 anos, transformar-se na segunda economia do mundo, ameaçando tomar a liderança norte-americana nas próximas décadas. É sempre bom lembrar que no próximo dia 3 de novembro completar-se-ão 30 anos da queda do Muro de Berlim, marco simbólico do fim do império da URSS, plantado 72 anos antes com a Revolução Russa.

Longe de mim dizer que o destino das duas revoluções será o mesmo. Até porque, apesar de baseadas nos mesmos princípios marxistas-leninistas e ocorrerem, contraditoriamente, em países agrários e não industrializados com forte presença proletária, elas percorreram caminhos diferentes, chegando até a trocar canhoneios nos idos de 1969, por questões fronteiriças alimentadas por momentâneas divergências políticas.

Na minha visão, a URSS feneceu por ser um sistema fechado em si mesmo, altamente burocratizado e repressivo em todas as áreas e latitudes. Em seu livro Perestroika, Mikhail Gorbachev relata: “Num certo momento, e isso ficou bastante claro na segunda metade dos anos 70, aconteceu algo que à primeira vista parecia inexplicável: o país começou a perder impulso. Os insucessos econômicos eram mais frequentes, as dificuldades começaram a se acumular e deteriorar e os problemas não solucionados multiplicaram-se”. Gorbachev continua: “Começaram a aparecer na vida social elementos do que chamamos de estagnação e outros fenômenos estranhos ao socialismo. Formou-se uma espécie de freio que afetou o desenvolvimento econômico. E tudo isso aconteceu numa época em que a revolução científica e tecnológica abria novos horizontes para o progresso econômico e social”.

Na China, com sua frase “não importa a cor do gato desde que cace os ratos”, Deng Xiaoping refreou o voluntarismo maoísta – o malogrado Grande Salto para a Frente e a Grande Revolução Cultural Proletária – e reorganizou o sistema produtivo. Começou a implementar o “socialismo com características chinesas” ou “socialismo de mercado”, combinando uma presença dominante do Estado na economia em parceria com empresas privadas.

A China atraiu investimentos estrangeiros, ávidos em lucrar com os baixos salários vigentes no país e incentivou as exportações, inicialmente de produtos de baixo valor agregado. Ávidos também para fornecer para um mercado potencial de 1,4 bilhão de chineses, a maior população do mundo. Mas exigiu que esses investidores se associassem e se associem a empresas ou grupos chineses, forçando uma convivência favorável a estes. E, de quebra, produziu uma das maiores poluições ambientais no planeta.

Mas, diferentemente da União Soviética, estudantes e pesquisadores chineses se espalharam pelas melhores universidades do mundo, absorvendo conhecimentos. O país investiu em títulos do governo norte-americano, detendo parte considerável desses papéis, o que lhe dá um respeitável poder de barganha com os EUA. Hoje, é responsável por fatias significativas das exportações de países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre estes o Brasil. Adquire e se associa a empresas no exterior. Trafega no mundo da alta tecnologia, competindo com as economias ocidentais, ultimamente em torno do 5G, a última palavra no mundo digital, que tem forte poder de transformar as bases das economias no futuro imediato. A tecnologia 5G é a peça fulcral dos embates de Trump com a China – além da invasão do mercado norte-americano por produtos e empresas chinesas.

Algum dia, especialmente nos Estados Unidos, acreditou-se que a porção de mercado da economia chinesa forçaria a liberalização da política chinesa. Os consumidores chineses logo exigiriam liberdade de escolhas políticas, dizia-se. Ledo engano. Nem a internet é livre por lá. É submetida a rigidíssimo controle e o Partido Comunista reina absoluto, presidido por Xi Jinping, alçado constitucionalmente ao mesmo patamar de Mao e Deng.

Poderá ocorrer alguma corrosão no poder, semelhante à da União Soviética? Não há evidências disso. E os conflitos em Hong Kong, que vive sob o lema “duas Chinas, dois sistemas”, são heranças de um passado em que a população local viveu em um sistema liberal patrocinado pela Grã-Bretanha.

Li, na imprensa, que a China pretende impor seu sistema ao mundo. É inegável que tem um peso, nunca antes imaginado, na economia mundial e tem influência decisiva nos seus rumos. Mas daí a impor seu sistema ao mundo vai uma grande distância. Talvez seja possível no Extremo Oriente. Certa vez, conversando com um diplomata chinês, comentei que as diferenças culturais e linguísticas dificultariam muito o exercício de soft power por parte seu país sobre as nações ocidentais, como fizeram e fazem os europeus e os norte-americanos. Ele manifestou dúvidas sobre minha afirmação. Mas realmente acho difícil.

De todo modo, é importante resgatar certas lições do passado. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a presença do urso soviético na Europa do Leste, chegando até a Alemanha Oriental, ajudou a impulsionar a construção do Estado de bem-estar social nos países líderes da Europa Ocidental, França, Itália, Inglaterra, para preservar a economia capitalista.

O que a estonteante presença da China na economia mundial pode impulsionar no Ocidente, além de muitas exportações para lá, mas também uma concorrência acirrada com as indústrias dos demais países? Vale assistir, na Netflix, ao filme American Industry, que documenta a compra e subsequente operação de uma fábrica fechada pela General Motors por uma fabricante chinesa de vidros para automóveis, a Fuyon.

O choque cultural é total, a possibilidade de estabelecimento de um sindicato operário é combatida pela direção chinesa e, aos poucos, os trabalhadores vão sendo substituídos por robots. Nada diferente do que ocorre nos países ocidentais. Surpreendente? Há alguns anos, ouvi um presidente de subsidiária de banco chinês no Brasil criticando a legislação trabalhista de nosso país. Disse também que os chineses são estimulados a poupar 20% de seus rendimentos mensais, visando a ter recursos para a aposentadoria. Nesse campo, os chineses são mais de mercado do que socialistas…

O imponente desfile militar presidido por Xi Jinping no aniversário da revolução reafirmou o projeto de poder da China. A história recente também mostra que ela precisa do resto do mundo para alimentar sua máquina econômica para satisfazer seus 1,4 bilhão de habitantes – o que dinamiza o setor produtivo dos países fornecedores. O desafio para esses países, entre eles o Brasil, é decifrar os caminhos para que essa relação seja ganha-ganha e não resulte em dependência.

 


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