Detalhe da capa do CD Partido em 5, vol. 1 – Foto: Divulgação / Partido em 5
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Antonio Candeia Filho, ou simplesmente “Candeia”, assim versou: Quem quiser pode ir… Eu vou ficar aqui! Din din din lá vai viola, do samba não vou embora.’ E ele ficou… e segurou a “ginga”, avisando que o “samba tem mandinga, mas não é macumba”. Ao ouvir pela primeira vez esses versos, o músico Igor de Bruyn Ferraz foi seduzido por aquela linguagem espontânea e, para ele, diferente de tudo o que havia ouvido em relação ao samba. Era por volta de 2009, quando ele ministrava aulas de violão em Santo André, na região do ABC paulista. “Tocava também em alguns bares e amigos me apresentaram um disco da série Partido em 5”.
Mais tarde, em 2016, o músico decidiu se aprofundar naquela obra “tão diferente e espontânea”. Na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP ele iniciou, ainda naquele ano, suas pesquisas e análises sobre dois discos da coleção Partido em 5, volumes 1 e 2, que ele considera inovadores. “O grupo era formado por sambistas já consagrados no Rio de Janeiro e eram todos ligados a escolas de samba”, descreve o pesquisador.
No estudo “Um samba sem poluição”: o partido-alto de Candeia em Partido em 5 Vols. I e II, Ferraz decidiu investigar o que ele considera um “movimento de enunciação e realização político-cultural daquela expressão musical negra do Rio de Janeiro, da década de 1970”. O grupo era formado por sambistas que já tinham algumas de suas composições gravadas por artistas da música brasileira. “Tinham fortes vínculos com as escolas de samba, principalmente a Portela”, conta o músico. Candeia, Casquinha (Otto Enrique Trepte), Joãozinho da Pecadora (João de Souza Barros), Wilson Moreira, Anézio do Cavaco (Anézio Tavares da Silva) e Velha da Portela (Euzébio do Nascimento) eram os componentes do Partido em 5 volume 1. “No segundo volume da série, Joãozinho da Pecadora foi substituído por Hélio Nascimento. “Todos da Portela”, lembra o pesquisador.
Descontração
Uma marca que Ferraz destaca nos dois discos, volumes 1 e 2 lançados em 1975 e 1976, respectivamente, é a descontração com que foram produzidos. “A percussão era pesada e é fácil perceber que eles gravaram sem a preocupação de dar certo, sem serem ‘exatos’ nos detalhes”, descreve o músico. Uma das particularidades dos discos é que, entre as músicas, não havia espaços ou intervalos. Era como se fosse um diálogo, em que cada sambista convocava o outro a interpretar mais um samba. “Um samba do povo, feito pelo povo e que volta para o povo”, como citou Candeia.
O pesquisador descreve ainda que as gravações recriavam exatamente os ambientes naturais do cotidiano daqueles sambistas. “A roda de samba”.
O lado político
Capa – Partido em 5 – 1972 – Vol I | Partido em 5 – lançado em 1975 | Partido em 5 – de 1972 – Vol II |
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Os volumes 1 e 2 do Partido em 5 também surgiram num momento de um certo questionamento às formas que as escolas de samba vinham tomando nos desfiles de carnaval. “Candeia era um crítico dos caminhos que as escolas passavam a seguir, deixando de lado algumas tradições”, conta Ferraz. Nos volumes estudados, segundo o pesquisador, Candeia e seus companheiros não tiveram a pretensão de reencontrar a essência do samba, “mas havia ali uma manifestação no sentido de que o samba poderia representar politicamente aquelas pessoas”.
“Pela mentalidade racista, o samba não era considerado uma ‘música digna’, que, antes dos anos 1910, tinha o mesmo sentido de ‘função’ ou ‘festa’”, reflete o músico. “Mas já havia manifestações que consideravam o gênero como um símbolo cultural e ideológico”, lembra. De acordo com o pesquisador, isso vem com sentido de “brasilidade”, desde o governo Vargas, “mas pelas tais descontinuidades e alterações provocadas pela alta comercialização dos desfiles, porém, justamente na década de 1970 há um fortalecimento de questões relacionadas com a ancestralidade negra, sua religiosidade, seus símbolos”. Ferraz relembra um verso do partido-alto Sou Mais o Samba, que foi gravado numa outra edição do próprio Partido em 5:
Calma, calma, minha gente
pra que tanto bambambam
pois os blacks de hoje em dia
são os sambistas de amanhã!
Eu não sou africano!
E foi nesse período, como destaca o pesquisador, que Candeia, Nei Lopes, Wilson Moreira e Darcy do Jongo fundaram o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, em 8 de dezembro de 1975. Na definição de Candeia, “o carnaval do povo para o povo”. A escola nunca foi filiada a nenhuma liga carnavalesca e também nunca participou de nenhum desfile competitivo, como um protesto ao “carnaval comercial”.
E os dois discos, na opinião do músico, traduzem muito bem o caminho da contestação político-cultural. As interpretações modernistas e nacionalistas do gênero eram, de certa forma contrapostas pelas interpretações descontraídas e originais daqueles compositores. “Era como pensar uma outra gramática”, destaca Ferraz. Mesmo assim, Candeia sentenciava: “É nossa contribuição, com toda humildade, para a Música Popular Brasileira”.
A percussão do Partido em 5 era comandada também por músicos oriundos das escolas de samba, como Gordinho (Antunes Marques Filho), Mestre Marçal (Nilton Marçal, cujo filho Elizeu Marçal entrou no volume 2) e Doutor (Edmundo Vasconcelos). E a batida era tão diferenciada quanto as músicas e letras do compositor Casquinha, “que eram ricas em sua divisão rítmica”. O Partido em 5, segundo Ferraz, teve outros volumes. Inclusive posteriormente, após a morte de Candeia, em 1978, houve o lançamento do Partido em 6, gravado em 1979. O estudo de Ferraz foi apresentado no ano de 2018 e o músico pretende dar continuidade acreditando sempre que a raiz do samba está viva. “Ao contrário do pensamento de Candeia, que declarou um dia que ‘a árvore perdeu a raiz’”.
Mais informações: igordbf@usp.br, com Igor de Bruyne Ferraz
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