Alex Flemming, o “outro” e a cidade

Alecsandra Matias de Oliveira é pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da ECA-USP

 21/05/2019 - Publicado há 5 anos

 

Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
À beira do lago, Narciso vê sua imagem refletida pelo espelho d’água e se joga às profundezas. A interpretação mais corrente do mito nos diz que o rapaz tomado de paixão se atira em busca do objeto de desejo. Porém, como ficariam as explicações se pensarmos que, acostumado a ver sua imagem espelhada nas íris das ninfas e dos seres da floresta, Narciso não teria suportado ver sua imagem distorcida pelas águas? Em princípio, seria preciso admitir que ele fosse capaz de ver o outro, construindo sua própria imagem e seu mundo a partir dessa percepção. Assim é o percurso estético de Alex Flemming – um artista viajante, como se autodenomina –, inquieto, criativo e intenso. Sempre questionando a si e ao outro, seus temas referem-se ao corpo, à sexualidade, à morte, à espiritualidade e, acima de tudo, à vida que nos cerca.

E como seria o olhar do artista sobre essa vida? Dividido entre dois grandes centros urbanos, São Paulo e Berlim (não entram nessa conta as diversas viagens anuais), Flemming nos desperta para esse cotidiano, onde as identidades tendem a se perder. Na cidade contemporânea, os indivíduos deslocam-se tão aceleradamente por espaços reais e virtuais que parecem estar sempre no mesmo lugar, sentindo o vazio de não chegar a lugar algum. Esse sentimento nos leva à sensação de um mundo desabitado, no qual a última morada já está em vias de rompimento: o corpo[1].  Em São Paulo, os sentimentos de desraizamento e de pertencimento são complementares. A cidade, considerada a maior da América Latina, é um conglomerado arquitetônico mesclado por pessoas vindas de diversos locais do Brasil e do mundo. Os sentimentos de “em casa” e de “homeless” apresentam-se forte e simultaneamente.

As relações entre corpo e cidade e as referências entre eu e o outro estão presentes nos retratos de anônimos dispostos pela estação do Metrô Sumaré (1998) – uma instalação que marca a diversidade étnica dos brasileiros e que traz trechos de poemas selecionados por Flemming (de Anchieta a Haroldo de Campos/de autores do século XVI aos contemporâneos). Fotografias e poemas compõem um imenso painel de celebração de uma identidade híbrida, impressa em vidro. Intrigado pela “verdade dos olhares nos documentos”[2], Flemming registra os 44 modelos frontalmente, como nos passaportes ou nas carteiras de identidade. Por segundos, esses desconhecidos (entre eles, a imagem do próprio artista – metáfora do viajante que carrega o mundo dentro de si) ganham destaque silencioso entre os passageiros.

De modo diverso da série para a estação Sumaré e 18 anos mais tarde, Flemming apresenta a série Biblioteca. Agora, são 16 vidros nos quais funcionários e frequentadores da Biblioteca Municipal Mário de Andrade surgem coloridos por três camadas de tinta superpostas, imprimindo às fotografias um ar de tridimensionalidade, mas, sobretudo, de encantamento. As fotografias vistas interna ou externamente não apresentam as mesmas cores. O aspecto sisudo da fotografia para o documento de identidade que poderia pairar sobre os registros da estação Sumaré sumiu e deu lugar a cores vivas e alegres. Os excertos literários desapareceram – nada mais óbvio na visão do artista do que colocar literatura na biblioteca. Flemming não é dado às obviedades. Na histórica Biblioteca Pública Municipal Mário de Andrade[3], o artista optou por evidenciar a vibração das cores e a energia do humano.

Foto: Divulgação / Henrique Luz

Sob os desdobramentos da Semana de Arte Moderna, entre os anos de 1930 e 1940, a Biblioteca Mário de Andrade foi construída no núcleo da cidade que se expandira do chamado “Centro velho” para o “Centro novo”, ou seja, para a região que se abria para além do vale do Anhangabaú em direção à Praça da República. O local em que se ergueu a biblioteca estava próximo do Teatro Municipal e de lojas de luxo, como a Casa Vogue, a Casa e Jardim e o novo Mappin, que se instalou em 1939 em frente ao Teatro Municipal. O local da biblioteca, portanto, evidenciava a modernidade da cidade e seu projeto arquitetônico refletia esse espírito moderno.

Por iniciativa dos críticos de arte Sérgio Milliet e Maria Eugênia Franco, à época, a Biblioteca Municipal tornou-se a primeira no País a constituir um acervo de arte moderna – antecipando as ações de museus, tais como o Masp e o MAM, que só seriam formados no final dos anos de 1940. Todos esses condicionantes históricos ligados à arquitetura e aos objetivos da Biblioteca Mário de Andrade cercam a intervenção de Alex Flemming no corredor criado durante a reforma do edifício, em 2010, projeto do escritório Piratininga, chefiado pelo arquiteto José Armênio. Esse corredor permitiu a circulação do público pela biblioteca sem que se adentrasse às outras salas de leitura.

Tecnicamente, a série Biblioteca é integrada por 16 vidros laminados com cerca de 2,30 de altura por 1,70 de largura cada um. A partir de 35 voluntários que se apresentaram para os registros fotográficos, foram selecionados oito homens e oito mulheres. Suas fotografias foram realizadas em cinco cores puras, como o vermelho, azul, amarelo, verde e branco. O processo desenvolvido por Flemming, no chão da fábrica, faz com que a tinta fique dentro do vidro – aqui um detalhe importante, o artista optou por não usar a cor preta. Isso não nos admira, quando observamos o emprego das cores no percurso poético do artista.

Sem dúvida, Flemming deu vida nova à fachada da biblioteca, ou melhor, o artista nos ofertou rostos, biografias e memórias de anônimos que revigoraram o espaço público. Não nos esqueçamos: a imagem do artista também está ali (vendo e sendo visto). Externamente, o colorido das fotografias e os tipos étnicos selecionados quebram a cor cinza soturna dos edifícios do centro da cidade e nos dão a sensação de pertencimento (em algum daqueles rostos percebo minha representação). Construímos nossa imagem na cidade. Internamente, o corredor – antes somente visto como local de passagem – passou a ser espaço de acolhimento, onde os visitantes da biblioteca podem ler, estudar, acessar a internet ou apenas conversar (ver e ser visto pelo outro).

 

[1] Considerado a referência estável da modernidade, o corpo é apresentado como o lugar do ser, da razão e da consciência. Hoje, o corpo cede espaço à relativização da presença cyber.

[2] Flemming apud Annateresa Fabris, Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico, Belo Horizonte, UFMG, 2004, p. 123.

[3] Criada em 1925, na gestão do prefeito Firmiano de Moraes Pinto e oficialmente inaugurada em 14 de janeiro de 1926, em um prédio alugado, na Rua 7 de Abril, nº 37 (Lei nº 2.836 de 1925 e Ato nº 1 de 1926). Posteriormente, a ideia foi retomada pelo prefeito Fábio Prado, quando da criação do Departamento de Cultura, em 1935. A nova sede foi idealizada pelo próprio diretor da Biblioteca Municipal, Rubens Borba de Moraes, e pelo arquiteto Jacques Pilon. Oficialmente, inaugurada em 25 de janeiro de 1942, na Rua da Consolação, 94, no centro da Praça Dom José Gaspar.

 


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