Haitianos no Brasil: ações pró-imigrantes devem cuidar para não reforçar preconceitos

Mesmo bem-intencionados, voluntários podem reproduzir conceitos problemáticos, aponta pesquisador

 06/05/2019 - Publicado há 5 anos
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Foto: Laura Daudén/ Conectas.Org via Fotos Públicas

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Na cidade de São Paulo, um movimento migratório intenso na última década tem criado novas dinâmicas para a sociedade e os espaços: a vinda de africanos, sul e centro-americanos. E uma pesquisa de mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP se propôs a compreender, a partir de uma etnografia, o papel do brasileiro na transmissão de preconceitos em relação ao imigrante haitiano.

Diego Ferrari, formado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), decidiu seu tema de mestrado em 2015, quando era professor de português para imigrantes na Missão Paz. A missão é uma ramificação da Igreja Nossa Senhora da Paz, localizada na cidade de São Paulo, e se dedica ao acolhimento e à inserção de migrantes.

Ele chegou a conclusões variadas sobre o trabalho institucional da Missão. Para Ferrari, certos preconceitos velados ainda prevalecem até mesmo em quem tem a intenção de participar de voluntariados. Repensar a maneira como se faz essa ajuda é o desafio que se cria a partir disso. A princípio, a ideia de Ferrari era entender as veias do preconceito, sensibilizado pelos obstáculos enfrentados pelos alunos imigrantes.

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Pesquisa procurou entender dinâmicas entre imigrantes, instituição de ajuda e a cidade de São Paulo – Foto: Wikimedia Commons-CC

Porém, em uma reflexão posterior, ele decidiu focar pela lente do brasileiro, e não do haitiano. Segundo ele, avaliar o preconceito não fazia tanto sentido quando ele mesmo não o vivencia. Assim, seu trabalho traz um novo direcionamento e investiga como o brasileiro se relaciona com o estrangeiro e a reprodução de preconceitos, partindo de seu próprio lugar social.  

Haitianos em São Paulo: uma etnografia institucional e urbana se concentra em três troncos principais. Sua análise foi feita a partir de vivências e interpretações dos objetos de estudo, constituindo a observação participante – uma técnica comum entre pesquisas antropológicas que consiste em vivenciar, analisar e trazer um olhar crítico sobre o que é visto.

O primeiro, institucional, diz respeito ao estudo das relações na unidade da Missão Paz. A via foi trabalhar sobre “a ideia da ajuda e outros conceitos atrelados a ela.”

Ferrari conversou com pessoas e participou do projeto para gerar uma reflexão de dentro, além da sua pesquisa. Ele explica que “a proposta era investigar o preconceito do meus pares e como estávamos reproduzindo isso”.

Paróquia Nossa Senhora da Paz. Foto: Divulgação/missaopaz.org

Ele percebeu que muitos dos empregadores e dos próprios voluntários também têm interesses particulares que prejudicavam outros. Para ele, certos conceitos culturais enraizados geravam impactos que eram “escondidos pelo véu da ajuda.”

As aulas de idiomas também entraram na etnografia. Ele traz um olhar crítico sobre as ações dos voluntários que, mesmo bem intencionados, podem reproduzir ações problemáticas. Para ele, mesmo as iniciativas da Missão continham “uma série de reprodução de problemas”. Ele descreve observações de suas próprias aulas, como ensinamentos muito mais envolvidos na realidade brasileira que haitiana. “A formação do professor informal também precisa ser trabalhada. É feita rapidamente, sem aprofundamento.”

Pelo desconhecimento da língua, os alunos não expressavam dúvidas e frustrações – que o pesquisador só compreendeu a fundo quando ele mesmo iniciou o aprendizado de crioulo haitiano, língua natural do país“Percebi como as pessoas tinham dúvidas e problemas que eram desconhecidos por uma vergonha, diretamente vinculada ao silêncio. Veio à tona, depois de dois anos de aula, a realidade.”

Ele também observou a relação e modificações do espaço do Glicério. O bairro é historicamente ponto de concentração de fluxos de estrangeiros. Hoje, seu perfil se constitui por árabes, americanos e africanos. “Tanto as pessoas quanto seus lugares sociais estão refletidos no urbano e no imaginário das pessoas sobre o local.”

A região também é conhecida pela degradação que tomou conta ao longo das décadas, e como os problemas físicos e a percepção do local influenciam na realidade dos imigrantes. “A região onde estão inseridos impacta e reflete a realidade do que é ser um imigrante negro em São Paulo.” A etnografia urbana se concentra nessas dinâmicas.

Ao mesmo tempo, revelavam relações de trabalho – informal ou não – que alcançam as pessoas. “Procurei entender que tipos de trabalho são oferecidos, as oportunidades. Como estão inseridos no mercado.” Chamou a atenção do pesquisador o número de vendedores informais nas ruas. Também há presença expressiva de restaurantes especializados na comida tradicional haitiana, destinada a eles mesmos como forma de manter sua cultura e tradições. Ele observou aumento significativo de comércios do gênero nos três anos de estudo.

Para ele, todas essas mudanças fazem parte do processo de migração e marcam o estilo de vida adotado pelos imigrantes, muitas vezes limitados de oportunidades pelo preconceito e não entendimento do próprio brasileiro.

A dissertação de Diego Ferrari, que teve orientação do professor Antonio Sergio Alfredo, pode ser acessada neste link.

Jornal da USP entrou em contato com a Missão Paz para comentar o trabalho, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.

Mais informações: e-mail dzferrari@gmail.com, com Diego Ferrari


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