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Luis Gregório Dias – Foto: Arquivo pessoal
Meu objetivo é compartilhar com os leitores do Jornal da USP um pouco dos bastidores de produção deste artigo, feito ao longo de mais de três anos de pesquisa e bastante trabalho, para ilustrar o tortuoso o caminho entre uma ideia inicial e uma publicação em uma revista de alto impacto.
Esse processo sempre ocorre em maior e menor grau e é pouco mencionado nos press releases ou nos artigos de divulgação. Eles nos mostram o “palco” e não os bastidores. A visão apenas do “palco” pode causar a (falsa) impressão de que o processo é “natural”: de repente, alguém teve uma ideia e isso virou um artigo em uma revista importante, como que por um passe de mágica.
Acho importante mostrar, especialmente para os estudantes e pesquisadores mais jovens, que um processo “rápido e bem-sucedido” raramente acontece. No geral, a geração de conhecimento é um processo árduo e, por vezes, frustrante. A chave é manter a resiliência diante dos inevitáveis obstáculos e aceitá-los como parte do processo.
O início: os resultados experimentais do ETH
Tudo começou com uma visita do Caio ao Instituto Federal de Tecnologia da Suíça (ETH-Zurich) em abril de 2014. O grupo do Klaus Ensslin tinha alguns resultados experimentais interessantes “saindo do forno” e queria discutir alguns pontos que não estavam entendendo.
O experimento do grupo do ETH envolvia medidas de alta precisão da corrente elétrica em um “circuito” nanoscópico formado por um ponto quântico acoplado a uma “cavidade” e ambos conectados a contatos metálicos pelos quais passa uma corrente elétrica.
A tecnologia empregada para fazer o dispositivo (figura acima) é impressionante. O grupo do ETH domina técnicas de litografia capazes de “desenhar” tais estruturas com alguns nanômetros de precisão. Para se ter uma ideia, o maior elemento no circuito é a cavidade, que tem um comprimento de cerca de 1 mícron, cerca de cem vezes menor que a espessura de um fio de cabelo humano.
O experimento consiste, basicamente, em passar uma corrente elétrica que sai da fonte (source) e é coletada em um dreno (drain). Mede-se então a condutância (o inverso da resistência) através do dispositivo, formado por um ponto quântico (dot) e uma cavidade (cavity), que são regiões onde os elétrons ficam temporariamente confinados. Um aspecto importante é que o sistema é pequeno e limpo o suficiente e mantido a baixas temperaturas (menos de 1 grau Kelvin) para que efeitos da natureza ondulatória do elétron previstos pela mecânica quântica se manifestem.
Se o acoplamento entre o ponto quântico e a cavidade é baixo, o que temos é o tunelamento de elétrons através do ponto quântico, o que resulta em uma sequência de picos na condutância separados por vales de condutância baixa. Isto é verificado no experimento como a sequência de picos (Figura à esquerda) que advém de uma mistura de um efeito exótico, o efeito Kondo, com o tunelamento quântico de elétrons pela cavidade. No entanto, algo diferente aparece para o caso de acoplamento forte: os picos são suprimidos e viram “vales”. Este último era o resultado que o pessoal do ETH não entendia.
Formulando o modelo
Caio mostrou estes resultados para mim e para o Sergio Ulloa, que já tínhamos um trabalho anterior sobre um sistema parecido. Durante o ano de 2014, eu trabalhei em uma modificação de um código de simulação computacional para descrever o sistema do ETH. Os primeiros resultados saíram no final de 2014 e início de 2015 e eram promissores.
Em maio de 2015, o Klaus Ensslin do ETH veio ao Brasil participar do 17o Brazilian Workshop on Semiconductor Physics em Uberlândia, MG, organizado pelo Edson e pelo Gerson. Conversamos sobre o tema e mostrei alguns dos resultados preliminares. O Klaus achou os resultados interessantes e perguntou se eu havia calculado a condutância, o que ainda não tinha sido feito. Nesta mesma conferência, conversei com o Edson e com o Gerson e soube que estavam interessados no mesmo problema. Decidimos unir forças.
Os primeiros problemas
Logo percebemos que o cálculo da condutância seria um problema difícil. O procedimento padrão para este cálculo é usar uma equação proposta por Yigal Meir e Ned Wingreen em um famoso paper de 1992. O problema é que a equação de Meir e Wingreen se aplica a sistemas em que a geometria das conexões entre o sistema seja simétrica: caminhos equivalentes levam da fonte para o sistema e do sistema para o dreno. Isto definitivamente não era o caso do sistema do ETH. Como mostra a figura, a cavidade estava acoplada somente ao dreno e não à fonte.
Estávamos em um impasse: ou desistíamos do cálculo da condutância ou tentávamos fazer uma generalização da fórmula de Meir e Wingreen para esta situação, algo que nunca havia sido feito. Decidimos pela segunda (e audaciosa) opção.
Em meados de 2015, o Caio veio à USP passar um tempo em visita ao grupo do professor Adalberto Fazzio e aproveitamos para trabalhar nesse problema. Ele teve uma ideia para escrever uma expressão parecida com a de Meir-Wingreen no nosso caso, mas não seria simples. As manipulações algébricas eram longas e tediosas. De qualquer modo, tínhamos encontrado o fio da meada.
Erros e mais erros…
Fizemos as manipulações algébricas e trabalhei no código computacional para fazer os cálculos. Porém, apareceu um problema grave: para alguns valores de parâmetros, o cálculo da condutância resultava em valores sem sentido físico. Ou seja, havia algum erro no código ou nas contas analíticas.
O código foi exaustivamente rechecado ao longo de 2016. O Gerson escreveu um outro código para testar uma versão mais simples do modelo e o resultado batia com o meu. Chegamos à conclusão de que o problema era nas contas.
Em outubro de 2016, o Edson veio a São Paulo e decidimos refazer todas as contas até achar o problema. Colocamos tudo em um grande quadro-negro da sala de seminários do DFMT no Instituto de Física da USP e procuramos por algo errado. Depois de algumas horas olhando as contas, finalmente encontramos o erro (foto abaixo).
Com o cálculo da condutância resolvido, a coisa andou rapidamente. Encontramos um regime de parâmetros compatíveis com os utilizados no experimento e as nossas curvas de condutância concordavam bastante bem com os dados experimentais (figura abaixo)
O artigo
Submetemos o artigo ao PRL em fevereiro de 2017 e a primeira leva de reviews veio em maio. Um dos referees recomendou o paper para publicação e o outro concordava que o paper era bom, mas recomendou publicação em outra revista, mais especializada. Recorremos e oferecemos novos argumentos, mostrando que a extensão da fórmula de Meir-Wingreen que derivamos não era trivial. Afinal, era um problema em aberto há mais de 20 anos. Também refizemos algumas contas e obtivemos resultados ainda mais condizentes com os do experimento.
Na resubmissão, o paper foi para um terceiro referee que concordou com nossos argumentos. O paper estava aceito.
Epílogo
Esse processo, longe de ser exceção, ilustra algo muito comum em ciência: o caminho até um resultado importante pode ser longo e, por vezes, frustrante. No nosso caso, foram três anos de trabalho, intercalado com trabalho em outros projetos e atividades, como ensino e serviços (o Caio, por exemplo, é diretor do Instituto de Física da UFF). No final, o esforço acabou recompensado, mas as coisas poderiam ter tomado outro rumo em várias partes do processo. Se assim fosse, paciência. Também faz parte do jogo.
Contato: luisdias@if.usp.br