MAC exibe o “Pernambuco cósmico” de Lúcia Suanê

Exposição traz obras das diferentes fases da artista pernambucana, produzidas ao longo de sete décadas de atividade artística

 Publicado: 26/04/2024     Atualizado: 29/04/2024 as 14:51

Texto: Lara Paiva*

Arte: Joyce Tenório**

Exposição O Pernambuco Cósmico de Suanê, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“Não se trata necessariamente de um Pernambuco com identidade regional ou histórica específica. É um mundo próprio da artista, que ela tem na memória e na imaginação, uma mistura de vivência e referências.” É assim que a exposição O Pernambuco Cósmico de Suanê, em cartaz até 21 de julho no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, é descrita pelo curador da mostra, Tálisson Melo, pós-doutorando do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A exposição reúne 62 pinturas da artista pernambucana Lúcia de Barros Carvalho (1922-2020), conhecida como Suanê, produzidas ao longo de mais de 70 anos de atividade artística, desde 1946 até 2019.
Lúcia Suanê em 1989
Lúcia Suanê em 1989 - Foto: Reprodução/Acervo pessoal da artista
Melo destaca que as diferentes fases da carreira artística de Suanê estão representadas na mostra. A primeira delas, inaugurada com uma exposição feita em 1946, em São Paulo, é marcada por “temas pernambucanos”, um momento figurativo da artista. Nos anos 1950, ela pinta encenações bíblicas. “A maneira de retratar essas cenas não é exatamente como em uma pintura bíblica”, informa. “São pessoas das cidades pequenas de Pernambuco de que ela se lembrava, que faziam encenações em torno das casas, da igreja, como procissões, com um público assistindo ao redor.”
De meados dos anos 1950 até os anos 1960, Suanê vive sua fase metafísica, com uma pesquisa de síntese de imagens. “Em vez de pintar paisagens de cidades, ela sintetiza tudo na fachada de uma casinha, bem sintético”, exemplifica o curador. Nos anos 1970 e 1980, a artista embarca em sua fase “cósmica” e aproxima-se da abstração. “Eu defendo que, no trabalho dela, tudo é abstração e figuração ao mesmo tempo. A fase cósmica trabalha com a composição de formas no espaço, mas os títulos das pinturas remetem à cosmologia do povo indígena Fulni-ô”, observa Melo. As raízes da artista continuam marcando as obras: “No meio de tudo isso estão fitas, laços, bandeirinhas de São João, borboletas e figuras antropomórficas ou animalizadas”, acrescenta o curador.
O curador Tálisson Melo - Foto: ResearchGate
O curador Tálisson Melo - Foto: ResearchGate

A partir dos anos 1990, Suanê passou a fazer pinturas de paisagens abstratas com nomes de cidades pernambucanas. “Não se vê uma paisagem, mas sim uma composição cromática, e também bandeirinhas de São João, mastros e fitas”, analisa o curador. “Ela faz isso com a aplicação de metal, chapa de cobre e vários materiais na tela.” Nessa fase de “memórias”, Suanê traz elementos de suas recordações e personagens de sua família, as tranças de sua avó, as calças do coronel. “Seu trabalho está sempre dialogando com esse universo de memória e imaginação sobre Pernambuco”, acrescenta Melo.

A técnica da artista também variou com o passar do tempo. Da têmpera a ovo e têmpera gorda, Suanê explora também pintura a óleo, o uso de diferentes materiais e a colagem. “Ela aproveita a transparência da têmpera a favor da fase cósmica. Os elementos que explodem na composição se valorizam com o contraste da transparência”, cita o curador. “Quando ela começa a trabalhar com tinta acrílica e tinta a óleo, isso implica a produção de obras em madeira ou em telas muito maiores do que ela fazia antes.”

Outra preocupação que se manteve foi o uso de cor. “Ela traz a paleta de 1946 até 2019, da primeira até a última obra”, diz Melo. Por isso, em vez de organizar a exposição de maneira cronológica, Melo optou por valorizar a riqueza cromática da obra da artista. “A aproximação das obras de diferentes fases se dá pela cor”, justifica o curador. 

Sobre esse tema, em 2007 Suanê destacou, numa entrevista para o portal Bahia Já, que a sua obra é uma busca pela composição e cor. “A cor sozinha é só uma cor bonita. Mas, quando se enamora de outra, ela se torna divina. Para mim está aí o mistério”, disse ela ao portal.

 

Uma reinvenção constante

A artista nasceu como Lúcia de Barros Carvalho num engenho em Água Preta, no interior de Pernambuco. Itinerou com sua família por diversas cidades do agreste pernambucano e viveu em Águas Belas, onde conviveu com o povo Fulni-ô. O nome Suanê foi dado a ela pelo pajé daquele povo e ela o adotou na adolescência. Também participou de costumes e celebrações populares, vivenciou a passagem de cangaceiros, ritos católicos e sincretismo religioso e absorveu o folclore, lendas e mitologias da região. Tudo virou insumo para sua arte. “Essa expressão plástica visual era, para ela, uma forma de se manter conectada ao seu lugar de origem, onde ela viveu a infância e adolescência e que constitui a singularidade dela”, explica o curador Tálisson Melo.

Suanê e a família migraram para São Paulo nos anos 1940. Na capital paulista ela conheceu seu marido, o artista Nélson Nóbrega, que a estimulou a criar imagens com as rezas, lendas e memórias de infância que ela contava. Suanê participou da 1ª Bienal de São Paulo, em 1951, com duas obras, ganhou o Prêmio Aquisição do Museu Paulista e fez um afresco na Capela do Morumbi. Mas tornou-se mais reclusa e expôs em mostras individuais com intervalos de mais de uma década. “Ela expõe de uma forma mais contida, para mostrar as diferentes fases que vai desenvolvendo”, informa Melo.

Mesmo com sua rica e diversa produção, a artista não obteve reconhecimento após sair dos circuitos de exposições. A maior parte das obras expostas em O Pernambuco Cósmico de Suanê pertence ao Projeto Suanê – fundado em 2020 pelo sobrinho da artista, Paulo de Barros Carvalho, com o objetivo de preservar a obra de Lúcia Suanê – ou foram emprestadas por familiares e amigos. No total, o acervo da artista soma mais de 600 obras, entre pinturas em têmpera, óleos sobre tela ou madeira, desenhos no papel e documentos pessoais.

Tálisson Melo atribui a invisibilidade de Suanê às poucas exposições que ela realizou e também à recusa da artista em se ligar a uma vertente específica. “Às vezes era anacrônico, porque ela fazia figuração quando a abstração estava bombando na Bienal”, afirma o curador. “Parece que a artista estava fora do seu tempo, mas, na verdade, ela só fazia o que entendia como genuíno da expressão dela.”

O legado de Suanê

 

Suanê buscava não se influenciar pelo que ocorria fora do seu escopo imaginativo. No ateliê que compartilhava com o marido, propunha que os artistas não tivessem obras de outros artistas perto de si. “É importante estudar e ter referências, conhecer a produção de outros artistas, mas, no momento em que se está no ateliê, pinta-se a expressão de seu mundo interior”, explica o curador. “A ideia era que o ateliê fosse um espaço para o artista expressar algo interno.”

Historiadores e colegas alegam que a reclusão de Suanê era devido à sua forte autocrítica. Por conta disso, a artista não queria ver suas obras expostas ao lado de pinturas de grandes nomes da arte. Ela chegou até mesmo a destruir uma obra sua, que tinha sido adquirida pelo mecenas Assis Chateaubriand e estava destinada a fazer parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp). 

Esse episódio é narrado pela própria Suanê numa carta que enviou a um outro sobrinho, o artista pernambucano Tunga (1952-2016). “Na época, Suanê morava no mesmo prédio de um curador do Masp, que estava com várias obras que seriam doadas para o Masp, entre elas uma pintura de Suanê”, conta a conservadora Talita Desserie, que está à frente do Projeto Suanê. “Um dia ela foi tomar café na casa desse curador, aproveitou um momento em que ele saiu e sequestrou a sua obra, que depois destruiu.”

“Transformar uma ideia em pintura é algo complicado para mim, porque a ‘coisa’ não sai como a gente pensa. Passei anos fazendo e desmanchando os quadros, tal qual Penélope com sua teia. O tempo nos leva às mudanças. Houve um despojamento, um evolutivo natural de quem trabalha ao longo dos anos.”

Mesmo expondo pouco, a produção da artista não diminuiu. Ela pintou até seus últimos dias de vida. “Temos obras de 2019 que são grandes e pesadas, de madeira, e ela continuava com a mesma perícia técnica. Ela mesma fazia o pigmento: combinava duas camadas de cor, uma de fundo e uma por cima. Ela manteve os aspectos técnicos”, explica Talita.

Em suas primeiras exposições, Suanê foi classificada como “artista popular”. Em contraponto, artistas com quem interagiu — como Alfredo Volpi — são consagrados no cânone artístico. Tálisson Melo lembra que foi Suanê e a artista Djanira as primeiras a pintar bandeirinhas, ícone que Volpi só retratou a partir de 1949. “O problema é quando a história da arte apresenta Volpi como alguém que criou tudo sozinho, sem estar em diálogo com seus pares. Ele estava em diálogo sim, inclusive com artistas como Suanê e Djanira, que foram muito apagadas”, explica Melo. “É importante ver a exposição de Suanê e de outras artistas pensando que elas tiveram, sim, um papel muito importante na construção de uma iconografia sobre o Brasil na pintura, e não só o Volpi.”

Depois da morte de Suanê, em 2020, começaram os esforços para conservar as obras da artista, como o Projeto Suanê. Talita assumiu a gestão e o restauro das obras. Também ajudou a montar a exposição no MAC. Ela diz que a exposição foi uma experiência diferente de catalogar as obras no acervo. “É outra coisa ver as obras no espaço e iluminação corretos. Também tem uma narrativa. Quando eu estou catalogando, eu penso a obra como um objeto separado, mas é diferente ver essa obra num conjunto que se harmoniza.”

Mesmo com pouco interesse em mostrar seu trabalho em exposições ou integrar o circuito artístico da sua época, Suanê foi prestigiada com prêmios e expôs quadros em Veneza, Paris, Tóquio e Santiago. Suas telas dividiram espaço com outros artistas brasileiros, como Emílio di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Volpi. “A exposição no MAC tem um grande potencial de nos fazer olhar para a história da arte brasileira e procurar artistas dedicados a produzir, mas que estão dentro do ateliê produzindo e não necessariamente sempre expondo”, opina Tálisson Melo. “É uma obra muito carregada de emoção. Acho que as pessoas vão se conectar. O que ela estava fazendo tinha uma singularidade e existência própria.”

A exposição O Pernambuco Cósmico de Suanê está em cartaz até 21 de julho, de terça-feira a domingo, das 10 às 21 horas, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, em São Paulo). Entrada grátis.

* Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro

** Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado dos Santos 


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