Desmatamento da Amazônia dispara de novo em 2020

Dados de satélite revelam um aumento de 34% na taxa de derrubada
da floresta nos últimos 12 meses

A destruição da floresta amazônica segue em ritmo acelerado no Brasil. Dados de monitoramento por satélite divulgados nesta sexta, dia 7, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou 34% nos últimos 12 meses, em comparação com o mesmo período do ano anterior. É a segunda alta consecutiva nos primeiros dois anos de gestão do presidente Jair Bolsonaro.

A comparação refere-se ao período de agosto de 2019 a julho de 2020, que é o calendário oficial de monitoramento da Amazônia, usado pelo Inpe para calcular as taxas anuais de desmatamento. Mais de 9,2 mil quilômetros quadrados (km2) de floresta foram derrubados nesses 12 meses (uma área equivalente a seis vezes o tamanho do município de São Paulo), comparado a 6,8 mil km2 no período de agosto de 2018 a julho de 2019, que já trouxe um aumento de 50% em relação ao ano anterior.

Variação mensal de área desmatada

Dados do projeto DETER para o ano de referência (agosto-julho)

Fonte: TerraBrasilis / CC BY SA

“O governo segue implementado sua política de desmantelamento das políticas ambientais e o resultado prático disso é o desmatamento da Amazônia”, resume Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física da USP, que há décadas desenvolve pesquisas na região amazônica. “Basicamente é isso; não tem muito segredo, não.”

Os dados são do programa Deter, um sistema rápido de monitoramento, baseado em imagens de satélite de média resolução, projetado para detectar desmatamentos “em tempo real” e alertar as autoridades sobre possíveis ilícitos ambientais em andamento. Apesar de não ser ideal para cálculos de área, ele serve como um ótimo “termômetro” da evolução do desmatamento no tempo e no espaço.

As taxas “finais” de desmatamento, por sua vez, são calculadas por um outro sistema, chamado Prodes, também desenvolvido pelo Inpe, que utiliza imagens de alta resolução para mapear em detalhes tudo o que foi desmatado ao longo de cada ano na Amazônia. O Prodes produz um relatório anual, enquanto o Deter tem seus dados atualizados semanalmente na plataforma TerraBrasilis.

Os dois sistemas retratam, essencialmente, uma mesma realidade, apenas com resolução espacial e temporal diferentes. O Deter funciona como uma prévia do Prodes: quando um sobe, é praticamente certo que o outro subirá também. No ano passado (agosto 2018-julho 2019), por exemplo, o Deter detectou 6.844 km2 de desmatamento e o Prodes, mais tarde, ampliou esse número para 10.129 km2 (aumento de 34% em relação ao ano anterior). Só resta saber, agora, qual será o tamanho do estrago mapeado pelo Prodes no seu próximo relatório, esperado para novembro. Mantendo a mesma proporção do ano passado, é provável que o total passe de 13 mil km2.

Histórico de devastação

Taxas oficiais de desmatamento na Amazônia, calculadas pelo PRODES

Histórico de desmatamento na Amazônia, mapeado pelo projeto PRODES, do INPE. Verde é floresta; amarelo são áreas já desmatadas em algum momento desde 1988; branco são áreas naturais de vegetação não florestal ou cobertas por nuvens. Fonte: TerraBrasillis/Prodes/Inpe

Os sistemas não indicam qual foi a causa do desmatamento, apenas comprovam que ele ocorreu; mas é fato sabido — comprovado por diversos estudos — que a maior parte dessas derrubadas na Amazônia ocorre à margem da lei. Segundo um levantamento feito pelo projeto MapBiomas Alerta, mais de 99% dos desmatamentos registrados no Brasil em 2019 tiveram algum tipo de irregularidade associada a eles, ou porque o desmatamento foi feito sem autorização legal ou porque avançou sobre alguma área proibida, como unidades de conservação, terras indígenas ou Áreas de Preservação Permanente (APPs).

Estudos indicam também que o desmatamento ilegal está intimamente associado à especulação e grilagem de terras públicas na região. Em torno disso giram ainda a exploração predatória de madeira, o garimpo e outras atividades ilegais.

Além de ilegal, a destruição da maior floresta tropical do mundo configura um verdadeiro “crime de lesa-pátria”, e uma “grande burrice”, nas palavras do presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. “Desmatar a Amazônia é perder riqueza”, resumiu ele, num evento recente na internet, citando os impactos severos sobre a biodiversidade, o clima e o agronegócio do País. 

O desmatamento é a maior fonte de emissão de gases do efeito estufa no Brasil, que contribuem para o aquecimento global, e a preservação da floresta é absolutamente crucial para a manutenção dos processos biológicos e climáticos que levam chuva para as regiões Centro-Oeste e Sudeste, irrigando lavouras e abastecendo reservatórios essenciais para a segurança hídrica, energética e alimentar do País. 

A meta assumida pelo Brasil em 2016 perante a Convenção do Clima das Nações Unidas, no Acordo de Paris, é zerar o desmatamento ilegal no País até 2030. Internamente, o Plano Plurianual (PPA), aprovado pelo próprio governo federal em dezembro de 2019, tem como meta reduzir o desmatamento e as queimadas ilegais no País em 90% até 2023. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, recentemente cogitou derrubar essa meta, mas acabou voltando atrás na decisão, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

O aumento do desmatamento, portanto, contraria uma série de compromissos legais, políticos e diplomáticos assumidos pelo Brasil nos últimos anos — incluindo, ainda, o Decreto 9.578 / 2018, referente à Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), que determina uma redução de 80% nos índices anuais de desmatamento em relação à media do período 1996-2005 (19.500 km2/ano). “Isso equivale a atingir uma taxa de 3.900 km2 em 2020, o que obviamente não conseguiremos, de acordo com os dados do Deter”, observa o chefe da Divisão de Sensoriamento Remoto do Inpe, Luiz Aragão.

Comemoração precoce

O desmatamento já vinha numa crescente desde 2013 — após um longo período de 12 anos em queda —, mas nitidamente ganhou velocidade a partir de 2018. O aumento verificado neste ano (34%) pelo Deter é menor do que o registrado no ano passado (50%), na transição do governo Temer para a gestão Bolsonaro; mas a área total desmatada no período, ainda assim, é bem maior do que a dos anos anteriores.

Grande parte desse desmatamento ocorreu ainda no segundo semestre de 2019, principalmente entre os meses de julho e setembro, mas a tendência de alta permaneceu ao longo de todo o primeiro semestre deste ano. Apenas em julho o desmatamento ficou abaixo da taxa do ano passado, numa comparação mês a mês: 1.650 km2 versus 2.250 km2, respectivamente.

O vice-presidente Hamilton Mourão comemorou o feito no Twitter, no último dia 5, antecipando-se à divulgação oficial do Inpe e atribuindo a taxa menor de julho à atuação das Forças Armadas na região. “A diminuição do desmatamento no Bioma Amazônia ficou caracterizado pelo início da inversão de tendência como mostra o gráfico abaixo, revelando resultados positivos da Operação Verde Brasil 2”, escreveu o general, em referência à operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), autorizada por Bolsonaro em maio, com o objetivo de combater ilícitos ambientais na região. Prevista para durar três meses, a ação foi prorrogada até novembro.

Postagem no Twitter do vice-presidente Mourão na quinta-feira, 5 de agosto

Uma segunda medida, anunciada pelo governo em 15 de julho, foi a proibição, por decreto, da prática de queimadas em todo o País, por um período de quatro meses. 

Pesquisadores ouvidos pela reportagem consideraram a comemoração do general prematura. O fato de a taxa de desmatamento no mês passado ter sido menor do que em julho de 2019 não significa que a tendência do desmatamento esteja se invertendo (é possível que ela continue subindo em agosto), nem é possível afirmar que isso seja resultado direto das ações militares na região. Vários dos resultados atribuídos originalmente pelo governo à Operação Verde Brasil 2 foram inflados com dados de operações do Ibama e do ICMBio; e apenas uma parte ínfima do dinheiro prometido para custear a operação havia sido liberada até o início de julho, segundo reportagens do jornal O Estado de S. Paulo.

“Há muito discurso, muita conversa, mas o fato é que não houve nenhuma ação contundente por parte do governo até agora para coibir o desmatamento”, diz o físico Ricardo Galvão, professor da USP e ex-diretor do Inpe (demitido por ordem de Bolsonaro, em agosto de 2019, quando os dados do Deter começaram a mostrar o crescimento explosivo do desmatamento). Passado um ano de sua demissão, ele se diz satisfeito (e surpreso) com o fato de os dados de monitoramento continuarem a ser produzidos e divulgados sem interferência pelo quadro técnico do instituto, mas considera que “a situação ainda é muito preocupante”. 

Queima de vegetação em área com desmatamento recente, detectado pelo DETER, em Alta Floresta (MT) - Foto: Christian Braga / Greenpeace

Além do aumento da área total desmatada, há outras mudanças preocupantes. Grandes desmatamentos, com centenas de hectares de extensão, voltaram a aparecer nas imagens de satélite, e há um aumento expressivo nas invasões de terras indígenas e unidades de conservação — áreas protegidas que sempre foram criticadas por Bolsonaro, como um suposto entrave ao desenvolvimento do País.

“A solução para a crise atual não virá com a adoção de medidas teatrais”, diz uma carta assinada por mais de 60 organizações da sociedade civil, enviada nesta quinta-feira (6 de agosto) a uma série de lideranças políticas e investidores, no Brasil e no exterior. O documento sugere cinco “medidas emergenciais” para combater o desmatamento, incluindo uma moratória de “no mínimo cinco anos” à derrubada da floresta e o fortalecimento dos órgãos de fiscalização ambiental, como Ibama, ICMBio e Funai.

“O Brasil já soube reduzir a taxa de desmatamento na Amazônia e ao mesmo tempo promover o aumento de sua produção agrícola e das exportações, gerando empregos e crescimento econômico”, diz a carta. “O atual governo, porém, não apresenta qualquer resquício de interesse ou capacidade em seguir este caminho. Suas ações baseiam-se em medidas falaciosas e campanhas publicitárias que tentam mascarar a realidade.”

Artaxo, da USP, reconhece que houve uma “mudança de discurso” por parte do governo nos últimos meses, mais favorável à conservação, mas duvida que esse discurso se transforme em ações concretas contra o desmatamento por conta própria. “Infelizmente, a opinião pública importa muito pouco para esse governo”, diz. “Acho que a única coisa capaz de mudar esse quadro, de fato, são as ameaças de boicote econômico.”

O governo vem sendo fortemente pressionado a mudar sua postura com relação ao meio ambiente — não mais, apenas, por cientistas e ambientalistas, mas também por grandes bancos, empresários e fundos de investimento nacionais e internacionais, que ameaçam tirar seus negócios do País se o governo não pôr fim ao desmatamento e adotar uma agenda de desenvolvimento mais sustentável.

Queima de vegetação em área com desmatamento recente, detectado pelo DETER, em Alta Floresta (MT) - Foto: Christian Braga / Greenpeace

Agronegócio

O agronegócio é peça-chave nesse debate. Frequentemente apontado como o “grande vilão” do desmatamento no País, o setor sofre também com as consequências negativas da devastação — da própria floresta, do clima e da reputação do País no exterior.

“Hoje o Brasil é muito ligado ao desmatamento e isso afeta a imagem do País como um todo. Como o agronegócio é fortemente exportador, ele também é afetado negativamente em sua imagem”, diz o pesquisador Marcos Fava Neves, professor titular do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, especialista em agronegócio. Segundo ele, a acusação de que o setor é o principal responsável pelo desmatamento não se justifica e, muitas vezes, esconde “interesses que não conhecemos por parte de quem acusa”.

“O desmatamento ilegal na Amazônia é feito por diversos agentes”, diz Neves. “Normalmente, após a área ser desmatada e seus valores principais extraídos, vêm produtores, a maioria de subsistência e pequenos, não integrados às cadeias produtivas do agronegócio, para explorarem as áreas.”

Dentre todas as atividades que se vinculam ao desmatamento, “aquela motivada pela produção agropecuária é, provavelmente, a menos rentável, mais arriscada e mais desnecessária de todas”, diz o agrônomo Gerd Sparovek, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, e coordenador do Laboratório de Planejamento de Uso do Solo e Conservação (Geolab). “Temos áreas abertas suficientes para atender à demanda esperada de produtos agropecuários do Brasil pelos próximos 50 anos, pelo menos”, diz. “Podemos produzir o suficiente sem desmatamento adicional, mas isso não anula as outras causas do desmatamento, que são as causas que sustentam essa dinâmica e sua enorme resiliência.”

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Gerd Sparovek - Foto: IEA-USP

“Brasil já foi referência mundial no controle do desmatamento, e as ferramentas e normativas necessárias para isso melhoraram muito na última década”, afirma Gerd Sparovek, da Esalq, em Piracicaba

Um estudo publicado em julho na revista Science, chamado “As maçãs podres do agronegócio brasileiro“, concluiu que 2% das propriedades rurais da Amazônia e do Cerrado são responsáveis, sozinhas, por mais de 60% do desmatamento ilegal praticado nesses biomas, e que 20% das exportações de soja e 17% das exportações de carne provenientes deles para a União Europeia podem estar “contaminados” por esse desmatamento. O trabalho, liderado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, teve grande repercussão e foi criticado por representantes do agronegócio — o que suscitou manifestações públicas de apoio de outros pesquisadores.

“Os resultados do artigo em questão atendem aos interesses da sociedade brasileira e não estão associados de modo algum a interesses protecionistas de outros países, como levianamente chegou a ser aventado por alguns”, diz uma carta divulgada pela Coalizão Ciência e Sociedade, assinada por Sparovek e outros quatro pesquisadores de renome da área — entre eles, Ricardo Ribeiro Rodrigues, também da Esalq, e Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. “Não há trilha viável para o agronegócio brasileiro se não forem equacionados seus equívocos e inconsistências legais, ambientais e sociais.”


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