Câmeras corporais e youtubers: a vida (e a segurança pública) centrada em imagens

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Publicado: 03/07/2024

O tema do artigo é o novo edital lançado pelo governo de São Paulo para a compra de 12 mil câmeras corporais, alterando o sistema utilizado até os dias de hoje.

O fato

• As novas câmeras em licitação reduziriam o tempo de gravação de 365 dias para 30 dias;
• As novas câmeras permitem gravação intermitente. O policial pode ligar e desligar as câmeras;
• Segundo análise realizada pelo Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública, da Fundação Getúlio Vargas, o uso das câmeras corporais (utilizadas atualmente) reduziu o número de mortes decorrentes da intervenção policial, com a queda de 63% nas lesões corporais causadas por policiais militares. (Fonte: Agência Brasil)

Entidades da sociedade civil se manifestam sobre o tema

“Dezoito entidades da sociedade civil, entre elas, a Comissão Arns, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), criticaram nesta quinta-feira, 23 de maio de 2024, o edital de licitação divulgado pelo governo paulista para a substituição das câmeras corporais utilizadas pela Polícia Militar. O edital foi lançado nesta quarta quarta-feira, 22 de maio de 2024, pelo governo paulista.

O edital altera uma das principais normas do programa atual: a possibilidade da gravação ininterrupta de todo o turno do policial. No novo modelo, o próprio policial será responsável por ligar o equipamento no momento da ocorrência, o que poderá ser feito também pela central de operações da polícia.

De acordo com as entidades, a mudança pode colocar em risco os bons resultados alcançados com a utilização dos equipamentos.” (Fonte: Agência Brasil)

Onde mora o perigo?

O poste na rua, com uma câmera de segurança, serve para vigiar. Um humano, dono ou locatário do equipamento, é patrão, diretor-editor daquele vídeo. Pagou para ter a imagem da sua casa, da sua empresa, dos suspeitos de roubo ou traição (entre outros). As câmeras de monitoramento possuem preço e potência variada. Os detalhes tecnológicos respondem pela eficiência ou ineficiência do equipamento. O dinheiro gasto pode ir para o lixo por razões técnicas.

Creiam, o diabo mora nos detalhes.

Algumas câmeras filmam com nitidez, à distância de 10 a 15 metros. Além destas medidas as imagens ficam borradas. Impossível reconhecer pessoas, cachorros e bandidos. Nem todas as câmeras filmam no escuro. Em locais de pouca iluminação, a solução é o infravermelho. As térmicas captam falhas elétricas em máquinas ou a presença de um ser humano, onde ele deveria estar ou não deveria estar. A variação do preço é grande. Depende das necessidades do proprietário do objeto. A utilidade das câmeras decorre da adequação da tecnologia com o serviço que ela realizará. Pode ser útil ou inútil.

Em muitos casos, a eficiência responde ao tempo de armazenamento da imagem. Exemplo, guardar a imagem por 365 dias, como ocorria com as câmeras corporais dos policiais em São Paulo, compradas no governo anterior, ou, apenas, por 30 dias, como ocorre com a nova licitação proposta pelo governo de São Paulo.

Exemplos são esclarecedores: Um ladrão entrou no prédio. A câmera na rua filmou. Os proprietários no prédio não tinham contrato com a empresa para resgatar as imagens. Quando decidiram pagar pelo serviço, as imagens tinham sido apagadas.

As filmagens podem ser contínuas ou descontínuas. Neste caso, é necessário ter cuidado no contrato de aluguel ou compra do equipamento. A câmera precisa estar adequada à sua função. Descuidos podem impedir a gravação no momento certo.

Existem casos complexos cuja intenção é filmar para não ver.

As inúmeras variações tecnológicas permitem justificações, no caso da câmera não cumprir a sua missão com êxito. O dinheiro foi gasto, mas por questões técnicas, a filmagem não se efetivou no momento ou da forma necessária. Acusar a tecnologia é uma excelente justificativa da falha. Quebrou ou não estava funcionando são expressões capazes de salvar a pátria. Dissolvem responsabilidades. A missão não foi cumprida na sua totalidade e ninguém foi responsabilizado.

A tecnologia, culpada ou inocente, ficará fora das grades.

A rede como linguagem

Editar pequenos vídeos é prática comum nas redes sociais. Faz parte da linguagem contemporânea. As redes sociais vão além do que se vê e do que vendem. Fabricam “milhões de amigos”, namorados, casamentos e ladrões. Comunicam e não discutem. Nem o preço da blusinha. Tudo ocorre sem chorinho do abatimento.

As imagens nas redes têm vocação lotérica. Podem gerar dinheiro, caso o autor consiga sucesso no TikTok ou em outras empresas similares.

As linguagens nas redes são gulosas e gostosas, uma embromação sensório-afetiva. Aliviam o peso de pensar. Os sonhos de glória (momentânea), dinheiro e poder nutrem a esperança de futuro repleto de milhares de compartilhamentos. Qualquer pessoa, policial, professor, entregador, comerciante, médico, desocupados de qualquer tipo, pode se transformar em editor de um vídeo e, de repente, fazer sucesso. Ficar rico sem esforço é o sonho da maioria das pessoas. No caso das redes, não precisa de preparo físico ou intelectual. É questão de sorte e persistência. Deu certo, pronto, sem discussão.

Celular é linguagem

A novidade do século 21 é o celular. Gera prazer. Basta passar o dedo com suavidade pelas telas. Aparelho sensível. Embebeda com um suceder de imagens, sonoras, cômicas, trágicas. Postagens com bichos, rosas, paisagens bucólicas, mensagens ligeiras, muitas bíblicas. Visualização é a palavra. Tempo aproximado de leitura: três segundos. Pensar: jamais.
A velha conversa com alguma lógica, longa e analítica, foi para o brejo.

Já observou na televisão? Diálogos curtos e, mesmo assim, com o controle na mão, troca-se de canal. Dois assistindo ao mesmo programa já é tema suficiente para gerar profundos desacordos.
No início, existiam dois objetos: a câmera para filmar e o celular para comunicação entre pessoas e controle das crianças. Com o casamento dos dois, eles ganharam mobilidade. Algumas câmeras colocadas no poste foram filiadas ao celular permitindo vigilância de 24 horas. Outras foram fixadas nos uniformes dos policiais. Ganharam mobilidade social e territorial. Até os jovens, especialistas em voo-livre, filmam a experiência. Os bichos não fogem à regra com seus hábitos diurnos e noturnos. Carregam câmeras permitindo estudos sobre seus modos de vida.

São filmados e filmam.

Não é mais possível viver sem imagens. Mesmo Uma vida em segredo (Autran Dourado, 1964), pequenininha, acanhada, não terá mais direito a um espaço reservado, oportunidade para ser invisível.

As imagens ocupam a cabeça. Não sobra espaço para pensar o que elas significam.

Câmera é linguagem

O debate sobre as câmeras corporais mostra linguagens em disputa.

O velho hábito de discutir projetos, contrapondo propostas diferenciadas, é coisa do passado. Um exemplo: antigamente era costume explicar as razões de uma política de segurança pública, voltada para programas de inteligência no combate ao crime. Explicar, por meio de um raciocínio lógico, era uma prática do dia a dia. Hoje é diferente. As explicações tecnológicas, com muitos detalhes, escondem o projeto que está por trás.

Fico imaginando os caminhos sinuosos, tecnológicos, para obscurecer e, não, esclarecer.

A época das luzes está definhando. Receio a sua morte.

A edição de imagens como linguagem

A revolução digital, plugada nas novidades tecnológicas, aproveitou a velha herança, o jornalismo sensacionalista, para ganhar espaço nas redes. A violência sempre vendeu jornais e, agora, fideliza internautas.

A violência ensina a ter medo. Recolher-se. O medo não estimula pensar, discutir.

Facilitar a edição de imagens e vídeos abriu as portas da comunicação, sem regulação, para o uso de imagens como instrumento político. Neste ambiente visual e virtual nasceu a discussão das câmeras corporais para policiais. A licitação proposta pelo governo de São Paulo entregou a eles, participantes da ação, o direito de ligar e desligar as câmeras. Criou o editor de vídeo em causa própria.

A câmera corporal, com edição dos policiais, garante visão geral e de detalhes. A imagem pode favorecer ou desfavorecer o policial. E ele sabe disso. Por esta razão não deve ser editor.

O recorte da cena, no momento em que ela é ligada, pode confundir mais do que esclarecer. Filmagem é linguagem. Com um plano aberto, ele capta a cena geral do tiroteio, com um primeiro plano é possível ver a vítima baleada e em um primeiríssimo plano ele filma o sangue da vítima. Um bom narrador permite vender a cena como a “verdade” dos fatos. Público certo.

Verdade?

Doce ilusão.

Cada pedaço de uma imagem pode ser interpretado de diversas maneiras. O ângulo da filmagem, os planos, o som, as minúcias escondem um mundo de coisas. Uma casa, visível no plano aberto, é apenas um telhado. Embaixo dele vivem pessoas muitas vezes. Elas viram e ouviram. São testemunhas do que ocorreu. Uma fresta da janela basta para ver. Todos têm direito de serem ouvidos, contar uma história. Crianças, mulheres, homens, paraplégicos, todos.

É preciso reunir informação para poder informar e, mais ainda, para julgar. Julgar, em um Estado laico, exige pensamento complexo, raciocínio lógico, respeito ao contraditório. Já muitas religiões usam símbolos, dogmas, onde a discussão não faz sentido.

A história de uma conversa entre dois amigos na mesma língua: projetos políticos em debate

Era hábito antigamente dois amigos, utilizando a língua portuguesa, discutirem sem esparramar ódio. Ódio era sentimento, não política. Cada qual procurava, com a velha gentileza, defender a sua posição, contida em um projeto. O primeiro explicava a proposta, seus objetivos de curto e longo prazos. O segundo privilegiava outros argumentos e trazia, como o primeiro, provas. Às vezes um saía vitorioso na polêmica, às vezes outro. Às vezes nem um, nem outro. A vida era assim, cerveja e papo, batidinha e manjubinha, vinho e queijo. Conversas sem mortos e feridos, conversa de amigos.

Você se lembra?

Se o tema fosse sobre segurança, um dos debatedores, de número 1, defenderia o uso da inteligência, a importância de prender os chefes do crime organizado para desmontar a quadrilha. Seria um combate pela raiz, evitando a morte de inocentes por bala perdida. Um argumento levando em conta a margem de erro, pondo em risco uma vida humana ou a possibilidade de um juízo equivocado. O defensor desta política também lembraria da importância em evitar modelos cristalizados, separando com fronteiras nítidas, quem ocupa o lugar do bem de quem o lugar do mal. O autor desta proposição, do raciocínio número 1, não deixaria de lado o respeito ao Estado de Direito e suas normas no combate ao crime. Imagens das famílias que perderam seus entes queridos trariam a dimensão emocional e visual das perdas para familiares e amigos das pessoas queridas.

Por exemplo:

No dia 7 de maio, o aposentado Clóvis Marcondes de Souza, de 70 anos, foi morto, no bairro do Tatuapé, enquanto caminhava para uma farmácia. Ele foi baleado na cabeça por um tiro disparado de dentro de uma viatura da Polícia Militar. De acordo com a Polícia, o disparo ocorreu durante uma abordagem a dois homens em uma motocicleta. (…)

Inicialmente, os policiais militares envolvidos na ocorrência não registraram boletim em delegacia de polícia, informando somente a própria corporação sobre a morte do idoso. A Polícia Civil só foi acionada mais tarde, por iniciativa da família da vítima. (Fonte: Agência Brasil)

Sem esquecer a velha razão, dos tempos em que ela era de uso cotidiano, o debatedor número 1 lembraria da importância das estatísticas (provas) no desenho das políticas públicas. Não faltam exemplos.

“O ano passado registrou um aumento de 38% nas mortes causadas por ação da Polícia Militar no estado, passando de 256, em 2022, para 353. Na capital paulista, as mortes provocadas pelos agentes da corporação passaram de 75, em 2022, para 92, no ano passado, um aumento de 22%. ” (Fonte: Agência Brasil)

O governo do estado de São Paulo decidiu encerrar a Operação Verão realizada pelas polícias militar e civil nas cidades da Baixada Santista desde dezembro de 2023. A ação deixou 56 civis mortos, em supostos confrontos com os agentes de segurança. Dois policiais também foram mortos por criminosos.

Ouvidor da Polícia do estado de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva avalia de forma negativa a operação e destaca o número elevado de pessoas mortas pelos agentes de segurança. “O balanço que a ouvidoria faz da Operação Verão é um balanço bastante negativo, dada a quantidade de pessoas impactadas pela operação de forma negativa. Os números oficiais dão conta de 56 mortes”, conclui Silva.

“Nessas mortes a gente tem pessoas deficientes, pessoas que faziam uso de muleta, pessoas cegas, uma mãe de família com seis filhos. A gente não acredita na segurança pública que mata, e não acredita na segurança pública que encarcera em massa. A gente acredita na segurança pública que inibe a ação do oportunista que vai atuar em conflito com a lei”, ressaltou.

Segundo o ouvidor, o modelo de segurança pública adotado pelo estado paulista tem resultado em mais pessoas mortas, incluindo policiais. “Esse modelo de morte, esse modelo de bandido bom é bandido morto, ele não serve nem para a sociedade nem para a polícia. Morrem mais policiais e morrem mais pessoas da sociedade civil e isso a gente tem que combater”. (…)

O número de pessoas mortas por policiais militares em serviço na Baixada Santista também subiu: aumentou mais de 400% nos dois primeiros meses deste ano. Em janeiro e fevereiro os policiais militares mataram 57 pessoas, segundo dados divulgados pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) – levantamento que inclui dados totais, além da Operação Verão. No primeiro bimestre de 2023, foram registradas dez mortes por policiais em serviço na região”. (Fonte: Agência Brasil)

O outro, o amigo número 2, defenderia posição discordante. Com tom empenhado manteria a discussão no mesmo patamar, na mesma “língua”. Discordante, defenderia uma política de segurança pública, marcado pelo uso da força contra o crime. Exército na rua. Seria uma forma de amedrontar o criminoso, com a ideia de que o crime não compensa. Poria fim à violência mediante uma intervenção cirúrgica, dura, rápida e vigorosa. O maior número de mortos, de balas perdidas corresponderia a efeitos colaterais necessários ao combate ao crime. Encontraria em Maquiavel um argumento de autoridade para justificar o uso da força como incentivo à obediência por meio do medo.

Tolerância zero é a meta.
Esta conversa, marcada pela lógica argumentativa, perdeu espaço em favor de uma outra linguagem, sustentada por imagens de combates na periferia com grande número de mortos.

No massacre do Carandiru o número oficial de mortos foi 111.

Não existe pena de morte no Brasil.

Um detalhe bíblico: e se existir um justo entre eles?

O Estado de Direito

Existe um projeto implícito na frase “bandido bom é bandido morto”. As palavras sugerem execuções sumárias, sem explicitar qual a política pública por trás desta estratégia. A justificação da violência como política pública é omitida porque envolve um tema constitucional desrespeitado: o respeito à vida.

Quantos inocentes podem ser mortos, por acidentes ou injustiças, a partir desta opção, baseada no ódio e na violência. Existe nesta política, de forma dissimulada, perseguição a setores da população, os pobres?

Reportagens sensacionalistas de crimes convencem o público, por meio de tensão, ação e imagens de impacto. Prisões abarrotadas respondem à demanda. Uma fantasia de que é possível resolver rapidamente o problema prendendo.

O crime se reproduz mais rapidamente que os coelhos.

A cenografia e sua importância para a comunicação simbólica

Os avanços tecnológicos permitiram deixar de lado o uso de helicópteros e, com baixo custo, filmar do alto, com drones, obtendo imagens de qualidade, em tempo real. Não faltam hábeis narradores. A capacidade de criar tensão, do tipo cinematográfico, favorece o engajamento do público. Uma boa narrativa e uma boa filmagem manterá a audiência alerta.
De um lado, os antigos, com palavras e argumentos, denunciando inúmeras prisões, às vezes injustas e ilegais. De outro, prisões em massa e aumento da mortalidade. A violência, como produto de mercado, seduz muitos espectadores, preocupados em manter a cidade sempre alerta.

El Salvador é um bom exemplo?

El Salvador é, atualmente, o país com o maior número de presos em relação a sua população no mundo, segundo a organização World Prision Brief. As estimativas são de que o país tenha cerca de 65 mil detentos, enquanto a população é de pouco mais de 6,3 milhões de pessoas, o que significa que cerca de 2% de toda a população está presa”. (Fonte: Estadão)

O combate à violência é um tema sensível o suficiente para a obtenção de apoio político tanto das elites como das classes médias. Ninguém se sente seguro. Não se deve esquecer os vínculos entre a pobreza e a criminalidade. O Estado tem como dever dar segurança à população e não exercer o poder apenas por medo e da violência.

A discussão sem resultados leva à violência e à descrença na razão.

El Salvador é um dos países mais pobres da América Latina. Segundo o Banco Mundial, o país tem o 5o. pior PIB per capita da região e 1,8% vive na pobreza. (Fonte: Estadão)

Suicídios de policiais

Um detalhe importante. Muitos policiais ficam abalados quando o tiro que matou uma criança saiu da sua arma. É difícil voltar para casa abraçar o filho sem lembrar do acidente no tiroteio, da morte de um inocente. A justificativa, bala perdida, não diminui a pressão do trabalho, de aparentar, sempre, força. Matar não faz bem para a saúde.

O número de suicídios cometidos por policiais militares bateu o recorde no Estado de São Paulo (…) Os 43 casos registrados em 2023 representam alta de 30% ante os 33 de 2022 e quase o dobro (95,5%) das 22 ocorrências em 2015 (…).

Em S. Paulo, são quatro suicídios a cada 10 mil policiais. A cifra é o dobro da média nacional, 1,97 para 10 mil, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2022 (…).

A taxa em São Paulo também é maior de que de países inteiros como os Estados Unidos, com dois suicídios a cada 10 mil policiais, e a Inglaterra, de um a cada 10 mil” (Fonte: O Estado de S. Paulo, 14 de junho de 2024, p. B3).

Matar como política pública prejudica os policiais e o Estado de Direito. A justificativa – bala perdida – nem sempre serve como antídoto para si mesmo. O medo, não confesso, também justifica um tiro prematuro em combate. Quem falhou, sabe.

A grande quantidade de suicídios merece ser discutida no contexto das políticas públicas.

Uma metáfora

Antigamente duas irmãs conversavam muito e divergiam muito. Mas, com alguma dificuldade alguns argumentos de uma acabavam convencendo a outra. Usavam a linguagem argumentativa e a visual. Tinham familiaridade com a dúvida e com o erro.

Hoje, a conversa é impossível. Brigaram. A linguagem visual ganhou autonomia. Não existe equivalência de linguagens. A “revolução digital” e o celular construíram fronteiras. Resultado, uma fala e a outra não escuta. Entre tapas e palavrões de baixo calibre o enfrentamento corporal se tornou frequente.

A agressão verbal expressa a impossibilidade de comunicação. Sem escuta, sobrou o confronto físico, a guerra.

O contraditório para inglês ver. Ausência real de discussão

Como se deu a polêmica entre as irmãs, uma que falava uma antiga língua e a outra iniciada na linguagem digital. No início só briga. Zero conversa. Argumentação inútil. Mas a caçula foi criativa, aceitou os argumentos da mais velha. Uma armadilha.

As duas utilizaram a prova como argumento. A mais velha uma prova ao estilo antigo, chata, abstrata, repleta de números, gráficos e tabelas. Para a mais nova uma prova inútil. Para ela a melhor opção foi argumentar com a tecnologia. Fica mais palatável. Evita o cerne do problema: a natureza das políticas de segurança pública.

No caso em questão a prova tecnológica reforça o papel da imagem, vendendo a impressão da imagem captar a “verdade”. Para a mais velha, uma fantasia da suposta “verdade”.

A irmã caçula sabia onde o sapato ia apertar na polêmica: nas estatísticas, na qualidade da filmagem e no tempo de gravação, contínua ou intermitente. Treinada para compreender a importância das tecnologias, em época de guerra, guardou uma resposta pronta no bolso do colete. Haveria, segundo ela, uma outra gravação, contínua, de pior qualidade, armazenada com baixo custo. Restrição de gasto são palavras que convencem por determinação divina. Cria apoiadores de ouvido. Afinal a estratégia que mistura variações tecnológicas e redução de custos faz supor eficiência e neutralidade. Agrada gregos e troianos. Afinal, ninguém sabe o dia de amanhã.

A irmã mais nova sabe das incríveis utilidades do silêncio, para ganhar uma jogada, longe das torcidas organizadas da sociedade civil, barulhentas.

A irmã mais velha, embora com idade avançada, denuncia. O tema é política de segurança pública e vidas humanas. Não me enrole.

Silenciamento da linguagem antiga

Como a linguagem visual sai vencedora diante de qualquer evidência?

Pela cegueira. Um manda, o outro obedece.

Obedece a quem?

Ao símbolo, ao mito, a costumes firmados por uma filosofia moral.

Deprecia a razão (fruto da dúvida), assimila cenograficamente a violência (novo), criando identidade psíquica por meio da inveja (imagem modelar) e capitalizando o ódio.
Ódio agrega e o símbolo faz o resto. Une com palavras de ordem.

Retornando à história das câmeras

Quem será responsável por separar as imagens “úteis” das “inúteis”, produzidas pelo policial, para serem arquivadas?

O que se discute de fato? Uma política de segurança pública? O que se esconde por trás das questões tecnológicas?

É fácil alegar – em um combate com criminosos fortemente armados – ter sido a filmagem interrompida por descuido. Argumentos como falha ou interferência na transmissão podem ser facilmente utilizados. Bairros pobres tem um número reduzido de antenas.

E o argumento mais simples de todos, a câmera estava quebrada. Creiam!

Quem será o responsável por avaliar essas ocorrências?

A própria polícia?

Simpático para a polícia.

A taxa de resolução de homicídios em São Paulo e no Brasil é razoável?

Diretor de imagem

Separar imagens é trabalho de um diretor de imagem. É ele que dirige o corta e cola, de acordo com uma narrativa construída previamente. Existe na escolha dos cortes a composição de um texto visual e sonoro. Qualquer corte em uma filmagem responde a um roteiro, consciente ou inconsciente, do editor-roteirista.

Quem será o responsável pelo corte e cola do material coletado? Teremos um continuísta para fiscalizar? E o som? Faz parte do contrato?

Um exemplo dos problemas da tecnologia usada para a vigilância:

A ausência de áudio nas gravações das câmeras de segurança do aeroporto de Roma, na Itália, impediu que a Polícia Federal (PF) confrontasse as diferentes versões sobre o que aconteceu no local durante o episódio da suposta agressão ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e sua família. (Fonte: CNN Brasil)

O jornalismo policial, desde a sua origem no pós-Segunda Guerra, constituiu uma narrativa dos conflitos, com uma definição do lugar do bem e o lugar do mal. A Guerra Fria foi um bom treino dos opostos. O mundo com dois lados simplifica o raciocínio. Personagens em cena com suas marcas sociais reafirmam o papel dos anjos e dos demônios. Não faltam imagens de uns e outros, cristalizadas na nossa mente. Imagens cristalizadas dificultam a comunicação e são inapropriadas para os debates.

Os antigos, filhos da retórica argumentativa, não se prepararam para o mundo digital. São do tempo dos livros, da escrita, do telefone com fio. Muitos são analfabetos digitais embora praticantes da dúvida sistemática. Curtam estes espécimes antes que todos, transformado em peças arqueológicas, estejam aprisionados em vitrines de museus.

A linguagem antiga é fruto da argumentação, da razão, da lógica, das estatísticas. É própria para a comunicação entre pessoas, para o contraditório. Pressupõe a dúvida. Considera, por exemplo, argumento forte a diminuição da mortalidade entre policiais o uso das câmeras, de infratores e vítimas de balas perdidas no estilo de antes da licitação.

A linguagem nova, visual, aceita a linguagem velha para embates cenográficos. Traz o inimigo para perto. Responde ao Outro sistematicamente com imagens. Procura o impacto. Não se presta para o diálogo. Posta na rede uma frase ao lado de imagens. A escrita é um acidente. Pequenos vídeos de ação, crimes e a tradicional luta do bem contra o mal confirmam uma já solidificada filosofia moral. Um fala e o outro obedece. A mensagem é sugerida por um símbolo. Suástica, por exemplo. Não há gráfico estatístico nem argumentos que convençam. Utiliza enfaticamente de filmagem, em tempo real, de uma ação policial, sugerindo obediência cega à suposta verdade. Pouco importa saber se a gravação é contínua ou fragmentária. Aliás, é melhor fragmentária para obter visualizações rápidas no TikTok. O mundo visual é por natureza fragmentado, descontínuo. Não pressupõe hipótese. A dúvida não existe. Não há diálogo com a linguagem antiga. A retórica argumentativa é inútil.

Desafio das linguagens é no Brasil e no mundo

Eleições em pequenos e grandes países, ricos e pobres, demonstram o lugar onde está posto o maior desafio da democracia, fundada com base na antiga retórica argumentativa. A força da linguagem visual surpreende dia a dia.

Observem, entre 360 milhões de europeus com direito ao voto, dois milhões são jovens de 16 e 17 anos. A inclusão dos jovens eleitores, diferentemente do que se imaginava, não resultou em um número maior de representantes do partido Verde no Parlamento Europeu. Eles ocupavam 74 cadeiras e ficaram com 53. Do ponto de vista da estatística, da razão, os jovens serão os mais prejudicados pelo aquecimento global. Ainda é cedo para um diagnóstico mais profundo. Frente aos números é razoável supor fortes ligações com as linguagens visuais.

Um popular youtuber e tiktoker, cujas postagens humorísticas lhe renderam dezenas de milhares de seguidores, surpreendeu o mundo político do Chipre e deve ficar com um dos seis assentos do país no Parlamento Europeu. Com mais de três quartos das cédulas contadas, os resultados mostram Fidias Panayiotou, um candidato independente, com quase 20% dos votos e ficando na frente dos dois partidos tradicionais do país. (Fonte: Estadão)

Pesquisas poderão responder se as razões têm origem no preço da energia, em razão da guerra com a Ucrânia, ou no Tiktok. Há controvérsias.

Duas linguagens diferentes não conversam.

Na impossibilidade de diálogos e consensos, qual o papel da Câmara e do Senado no Brasil? As ruas. Palavras de ordem, como nos velhos tempos, emergem das ruas, sobre temas silenciados no parlamento. Desinteressada da razão assistimos o crescimento da presença de uma política teocrática medievalista, também marcada pelo uso de símbolos visuais distantes da razão.

É inútil dar provas de desenvolvimento econômico, melhorias na distribuição de renda, crescimento do emprego com carteira assinada, argumentos com origem na razão. Poucos se interessam pela lógica, por evidências e políticas de Estado inclusivas.

Os símbolos são reféns da propaganda e inimigos do pensamento complexo. Existem propostas para serem seguidas. Evita-se projetos para serem discutidos pela raiz.

No Brasil o Estado é laico e o livro, a Constituição.

Mantenho a esperança. A linguagem, simbólica, com a mesma rapidez que mobiliza, desmobiliza.

Conclusão simples:

Não se deve colocar a raposa para vigiar a linguiça.

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