Historiador discute indústria da cultura e resistência do negro em A Voz Suprema do Blues

Na série Filme com o Especialista, professores da USP comentam trailers de filmes a partir de suas experiências de pesquisa, ensino e extensão

06/08/2021

Tabita Said

Alternando entre resistir e ceder, Ma Rainey – a mãe do blues, vivida pela premiada atriz Viola Davis – personifica a tensão entre a hegemonia branca da indústria da cultura e a exploração do repertório cultural afro-americano. O professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Marcos Napolitano, destaca as várias formas de resistência ao racismo por meio da música popular no filme A Voz Suprema do Blues (Netflix).

O longa é uma adaptação de peça teatral homônima e destaca, ainda, os conflitos entre Ma Rainey e o trompetista Levee, último personagem de Chadwick Boseman para o cinema. O astro de Pantera Negra morreu três meses antes da estreia do filme, em 2020.

Em cena, a cantora e seu grupo celebram o blues “raiz” em um estúdio apertado e quente na Chicago dos anos 1920, quando o gênero musical começa a transitar do rural para o urbano. Como gravar uma música de matriz comunitária, vivida no circuito de shows, em um estúdio gerenciado por um manager branco? O contexto histórico desses grupos sociais e da indústria fonográfica são comentados por Napolitano, especialista na área de história da cultura, com ênfase nas relações entre história e música popular e história e cinema.

Nesta edição de Filme com o Especialista, o professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Marcos Napolitano, destaca as várias formas de resistência ao racismo na música popular, presentes no filme A Voz Suprema do Blues, do diretor George Wolfe.

As disputas entre músicos e com representantes da indústria fonográfica da década de 1920 revelam preconceito e oportunismo sobre o talento de Ma Rainey (Viola Davis), a "mãe do blues".

A década de 1920 foi marcada por uma grande industrialização no Norte dos Estados Unidos (EUA) e uma consequente onda de imigração, que durou ao menos 54 anos. A “Grande Migração Afro-Americana” deslocou cerca de 6 milhões de afro-americanos do Sul rural dos EUA aos centros urbanos.

Fugindo da segregação racial e da discriminação, a população afro-americana buscava oportunidade e sobrevivência em regiões de crescimento da indústria automobilística, como Detroit e Chicago.

Esse movimento gerou concentração urbana e potencial de consumo da música tradicional, que aos poucos foi sendo formatada para um mercado musical também segregado. A presença de negros na indústria musical da década de 20 engendrou um mercado “paralelo”, direcionado aos próprios negros que experimentavam novas possibilidades a partir do hibridismo cultural com os gêneros de matriz africana.

Mas aos poucos, a indústria da cultura passa a fazer apropriações e adaptações dessas matrizes sonoras para agradar um público mais amplo. “Alguns artistas negros conseguem furar esse bloqueio e circular pelo mundo branco, como Duke Ellington, Louis Armstrong, mas ainda é um mundo muito segmentado. O primeiro negro que aparecerá na televisão, nos EUA, é o Ray Charles, só em 1955”, aponta Marcos Napolitano.

O professor conta que as adaptações feitas pela indústria musical correspondem a um branqueamento da música negra, mas mantendo o blues como carro-chefe. “O que também é legal no filme é a importância do blues para a afirmação da identidade e como uma espécie de matriz musical para todos os outros gêneros afro-americanos: jazz, soul, R&B, funk; tudo, ali, parece nascer do blues.”

História social, histórias transatlânticas

O Programa de História Social da USP é um dos mais antigos e conceituados do Brasil, remontando à criação da própria Universidade, nos anos 1930. Reunindo docentes de áreas distintas, o programa de pós-graduação mantém sete linhas de pesquisa. Entre elas, História, Cultura e Poder, na qual o professor Marcos Napolitano é orientador. 

Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar, Napolitano é autor do livro Seguindo a canção: Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969), entre outros voltados ao ensino básico, com foco no uso do audiovisual na escola.

Atualmente, Napolitano integra o projeto internacional Transatlantic Cultures, plataforma financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela francesa Agence Nationale de Recherche.

A plataforma de história cultural transatlântica é colaborativa e pretende ser uma enciclopédia digital on-line editada em quatro línguas (inglês, francês, espanhol e português). As produções analisam a dinâmica cultural do Espaço Atlântico e o seu papel central no processo contemporâneo de globalização.

Napolitano é um dos coordenadores da rubrica de “música” do projeto, que destaca a história e as relações culturais entre Europa, África e as Américas.