Em evento na USP, jornalistas lembram a participação da imprensa no movimento Diretas Já!

Realizado em 26 de abril passado, encontro teve participação de Fernando Mitre, Ricardo Kotscho e Oscar Pilagallo

 Publicado: 30/04/2024     Atualizado: 03/05/2024 as 18:27

Texto: Ricardo Thomé*
Arte: Diego Facundini**

Comício em São Paulo, em 1984, em favor das eleições diretas para a Presidência da República - Foto: Governo do Estado de São Paulo/Agência Brasil

O processo de restauração da democracia no Brasil – sufocada pelo golpe militar de 31 de março de 1964 – foi árduo, demorado e exigiu a atuação de diferentes grupos da sociedade, incluindo os jornalistas. Estes foram em boa parte responsáveis pelo sucesso do movimento Diretas Já!, que em 1984 promoveu comícios em diferentes cidades do País, com a participação de centenas de milhares de pessoas, em favor da aprovação das eleições diretas para a Presidência da República – um marco na história política do País, que contribuiu para o fim da ditadura instalada com o golpe de 1964.

Para relembrar esse marco histórico e a importância da imprensa nesse processo, ocorrido há exatos 40 anos, três jornalistas marcados pelo movimento Diretas Já! – Fernando Mitre, Ricardo Kotscho e Oscar Pilagallo – participaram do evento O Papel da Imprensa nas Diretas Já!, realizado no dia 26 de abril na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Promovido pelo Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA – por meio da jornalista Ligia Trigo – e pela Jornalismo Júnior, empresa júnior vinculada ao curso de Jornalismo da ECA, o evento teve a mediação do professor Eugênio Bucci, da ECA. O encontro foi transmitido ao vivo pelo canal do Departamento de Jornalismo e Editoração na plataforma YouTube (disponível aqui).

O evento foi dividido em três partes. De início, os jornalistas compartilharam memórias dos tempos das Diretas Já!. Depois, falaram sobre o sentimento nas redações e na sociedade diante do movimento. Por fim, foi aberta uma sessão de perguntas para o público. Enquanto Kotscho e Mitre relataram suas experiências pessoais como profissionais da Folha de S. Paulo e do Jornal da Tarde, respectivamente, Pilagallo destacou as pesquisas que realizou para escrever o livro O Girassol que Nos Tinge: Uma História das Diretas Jáo Maior Movimento Popular do Brasil, que tem 448 páginas e foi publicado em 2023 pela Editora Fósforo.

O evento na ECA, que lembrou os 40 anos do movimento Diretas Já! – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

As Diretas: uma derrota com sabor de vitória

“A morte da democracia”, “o renascimento da democracia” e “o desfile da democracia”. Foi assim que Fernando Mitre definiu, em sua fala inicial, três momentos intimamente ligados à sua atuação como jornalista e à história do Brasil: o Comício da Central do Brasil (onde o então presidente João Goulart tentou, por uma última vez, aprovar suas reformas, sem sucesso), em 13 de março de 1964, as Diretas Já!, em 1984, e o primeiro debate entre candidatos à Presidência da República transmitido pela TV Bandeirantes, onde ele já trabalhava na época, em 1989.

Durante a campanha das Diretas Já!, que começou em 1983, Fernando Mitre era editor-chefe do Jornal da Tarde – jornal vespertino do mesmo grupo de O Estado de S. Paulo. O movimento começou após o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresentar uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC número 5 de 1983, em março daquele ano. No fim do mês, ocorreu o primeiro comício, em Abreu e Lima, região metropolitana de Recife (PE). A seguir, em junho, foi feito um comício em Goiânia (GO), onde o deputado Ulysses Guimarães esteve presente, mas sem mais ninguém do PMDB. Em novembro daquele ano, a maior reunião até então: cerca de 15 mil pessoas na Praça Charles Miller, em São Paulo. Por ter sido um evento majoritariamente ligado ao PT, porém, não teve tanta força – convidado ao evento, o então governador de São Paulo, Franco Montoro (PMDB), não foi, enquanto Fernando Henrique Cardoso, à época senador pelo PMDB, só não foi vaiado porque anunciou a morte de Teotônio Vilela, importante político alagoano que havia falecido naquele dia. À época, Ricardo Kotscho, que era repórter da Folha de S. Paulo, reportou de forma crítica o comício paulistano, no sentido de que uma oposição dividida como se apresentava naquele momento não conseguiria aprovar as eleições presidenciais diretas.

Ricardo Kotscho, o “cronista das Diretas”, como o deputado Ulysses Guimarães chamou o jornalista — Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O primeiro comício de relevância nacional aconteceu no ano seguinte, em Curitiba (PR), no dia 12 de janeiro. Com cerca de 50 mil pessoas presentes, o evento conseguiu abranger todos os partidos de oposição. Oscar Pilagallo explicou que a escolha pelo local não foi por acaso: seja política, seja comercialmente, a capital paranaense sempre foi utilizada para “testes”. Além disso, o governador José Richa (PMDB) havia sido o anfitrião de uma reunião de governadores de oposição no ano anterior, em Foz do Iguaçu (PR), o que também deu a Curitiba um lugar de importância.
A partir dali, as Diretas Já! ganharam relevância, de fato. E os veículos jornalísticos, que nos primeiros comícios não deram tanto valor ao movimento, passaram a estar mais atentos. Em 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, cerca de 300 mil pessoas se reuniram. “Isso mostrou que o povo já estava nas ruas e delas não sairia”, enfatizou Mitre. No mês seguinte, em Belo Horizonte (MG), foram mais de 400 mil pessoas, desta vez com a presença de Tancredo Neves, então governador de Minas Gerais, além de Leonel Brizola, governador do Rio de Janeiro, Franco Montoro, governador de São Paulo, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do PT, e Ulysses Guimarães – que viria a ser presidente da Assembleia Nacional Constituinte alguns anos depois. Em abril, foi a vez de a Candelária, no Rio de Janeiro, receber um grande comício.

Fernando Mitre, da TV Bandeirantes, durante o evento O Papel da Imprensa nas Diretas Já! — Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Sobre Tancredo, Mitre relatou um encontro que teve com o governador mineiro, que se elegeria presidente por meio de eleições indiretas, posteriormente – e morreria antes de iniciar o mandato. Na ocasião, o atual diretor nacional de jornalismo da Rede Bandeirantes indagou o governador de Minas sobre um possível “plano B” para a eventualidade da derrota da PEC no Congresso, ao que Tancredo respondeu que “não havia nenhum plano B”. Hoje em dia, porém, sabe-se que o mineiro já articulava pelas eleições indiretas em Brasília (DF), enquanto apoiava as diretas nos comícios pelo País. Partindo desse exemplo, os jornalistas presentes no evento na ECA discutiram o “cinismo político” e a “moderação” de Tancredo Neves, entendendo sua estratégia como um “caminho político”, não como “medo”.

Mitre finalizou seus comentários lembrando que “no Brasil há forças que se repetem em momentos diferentes. Em 1945, as forças que derrubaram Getúlio Vargas e acabaram com o Estado Novo foram as mesmas que levaram Getúlio ao suicídio em 1954, as mesmas que tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1955, que impediram João Goulart de tomar posse via presidencialismo em 1961 e que o derrubaram em 1964” – fazendo referência aos militares. A conclusão do jornalista é que, em alguns casos, a moderação de Tancredo Neves, um dos responsáveis pela articulação do parlamentarismo em 1961, é a resposta.

Após quatro meses de grande mobilização, a emenda em prol das eleições diretas foi derrotada no Plenário da Câmara dos Deputados. Foram 298 votos a favor, 65 contra, três abstenções e 113 ausências – eram necessários 320 votos para a aprovação. Apesar disso, Pilagallo ressaltou a importância de se valorizar o movimento. “Muita gente tende a menosprezar as Diretas Já! baseada apenas no fato de que houve uma derrota. Mas essa é uma pequena parte da história. A derrota acabou sendo transfigurada numa vitória posterior, que foi representada pelo início do processo de redemocratização.”

Oscar Pilagallo é autor do livro O Girassol Que Nos Tinge: Uma História das Diretas Já — Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Capa do livro de Oscar Pilagallo, lançado em 2023— Foto: Divulgação/Fósforo Editora

A transição acabou por ser “lenta, gradual e segura”, como propusera o ex-presidente Ernesto Geisel, mas chegou a um desfecho pró-democracia nos anos seguintes, com a aprovação de uma nova Constituição. Sobre isso, Pilagallo esclareceu que, em termos práticos, a escolha por fazer uma campanha em prol das eleições diretas não foi consensual e se deu, majoritariamente, por uma questão de acessibilidade e identificação por parte das pessoas a partir da ideia do voto para presidente – o que facilitaria com que a mobilização fosse maior, ainda que a aprovação de uma nova Constituição tivesse muito mais garantia de “mudança de rumo” do que apenas a troca no Executivo.

Cobertura engajada

“Um jornalista não pode ser contra um movimento como as Diretas Já!, é um contrassenso moral e técnico”, disse Mitre ao comentar as divergências existentes nas redações dos anos 1980. Mas quem assistiu à palestra pôde compreender que nem todos esses eventos tiveram cobertura de toda a imprensa. No início, o único veículo a cobrir as Diretas Já! foi a Folha de S. Paulo. Com o passar dos comícios, porém, o movimento foi tomando proporções que tornaram impossível que os veículos jornalísticos o ignorassem por completo, fosse por não apoiarem a emenda constitucional, fosse por estarem descrentes quanto ao sucesso das manifestações.

O Grupo Globo, por exemplo, que era contra as Diretas Já!, fez a transmissão ao vivo pela TV Globo tanto do Comício da Candelária, no Rio de Janeiro, como do Comício do Vale do Anhangabaú, em São Paulo – o que fez com que o então presidente João Batista Figueiredo ameaçasse cassar a concessão da emissora, em retaliação. A TV Bandeirantes, que foi o primeiro canal de TV a cobrir as manifestações, perdeu uma concessão pelo mesmo motivo. Na mídia impressa, O Estado de S. Paulo era contra, mas o Jornal da Tarde, do mesmo grupo, pôde colocar-se a favor, o que Mitre atribui a conversas que teve com Rui Mesquita, então dono do jornal, e à influência dos filhos do proprietário, que eram a favor das eleições diretas. A “vocação moderna” do periódico vespertino permitiu, então, que o jornalista fizesse capas mais incisivas e que exaltasse o movimento para um público que talvez ainda não estivesse convencido daquilo. “Numa casa onde o jornal que mais circulava era contra, o Jornal da Tarde, sendo da mesma empresa, foi muito importante.”

Para o então editor-chefe do Jornal da Tarde, cobrir as Diretas Já! foi algo “inteiramente emocional”: “Há certos momentos em que o evento se torna tão grande que a objetividade jornalística, embora seja um princípio a ser discutido sempre, fica de lado”. Em entrevista ao Jornal da USP, Ricardo Kotscho corrobora a ideia e admite que, já naquela época, tinha consciência da relevância do que estava cobrindo: “Eu tive o sentimento de estar presenciando a história e de estarmos fazendo história desde o primeiro dia. Tive uma participação direta nisso, o que foi importantíssimo para a minha carreira, mas também para o País”. Kotscho, apelidado de “o cronista das Diretas” por Ulysses Guimarães, esteve ao lado do pemedebista ao longo de grande parte da campanha.

Ambiguidades

Mas havia na imprensa brasileira da época quem temesse que a abordagem “ufanista”, nas palavras de Kotscho, pudesse abrir espaço para uma última ofensiva dos militares, em especial da chamada “linha dura”, que havia sofrido revezes recentes mas seguia tendo representantes. Pilagallo lembrou que, enquanto as Diretas Já! eclodiam no Brasil, a Argentina elegia seu primeiro presidente no pós-ditadura, Raúl Alfonsín, e julgava, no banco de réus, os principais militares responsáveis pela ditadura e pela opressão em seu território. “Aqui no Brasil, os militares olhavam para isso e definiam como ‘revanchismo’, e viam nas figuras de Leonel Brizola e de Lula um risco.”

No que diz respeito aos veículos que eram contra as Diretas Já! e passaram a cobri-las depois, Pilagallo acredita que a pressão popular tenha sido o principal fator de mudança. Ele citou manchetes de editoriais da época como exemplos de como era a postura desses grupos antes de o movimento ganhar força. O Jornal do Brasil se referiu às Diretas Já! como um “açodamento” (precipitação). O Globo, por sua vez, baseou-se nos comícios recentes para dizer que apenas 1% da população apoiava o movimento, e fez um paralelo entre Brasil e Estados Unidos para dizer que, afinal, havia eleições no País – o que Pilagallo considera uma falácia, já que, no Brasil, “o colégio eleitoral era pequeno, restrito e sem legitimidade”. Já O Estado de S. Paulo criticou os financiamentos públicos dos comícios, apontando Lula e Ulysses como “beneficiários pessoais” desse processo.

Diante dessas ambiguidades, Ricardo Kotscho finalizou a conversa com o Jornal da USP com um alerta e uma mensagem positiva aos jornalistas: “ A democracia está sempre em construção. Está sempre ameaçada e nunca está pronta. O papel do repórter é contar o que aconteceu para que não seja esquecido e para que as pessoas valorizem a luta pela democracia”.

A Democracia Corintiana e o uso do amarelo como cor-símbolo das Diretas Já! foram temas da sessão de perguntas no evento realizado na USP. Na imagem, Ligia Trigo (à esquerda) veste o modelo lançado pelo Corinthians em 2023, em alusão à campanha. Da esquerda para a direita, aparecem Ligia Trigo, Ricardo Kotscho, Fernando Mitre e Oscar Pilagallo — Foto: Arquivo pessoal

O vídeo com a íntegra do evento O Papel da Imprensa nas Diretas Já!, realizado no dia 26 de abril de 2024 na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, está disponível no canal do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA na plataforma Youtube.

*Estagiário sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro
**Estagiário sob supervisão de Simone Gomes


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