A reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e pretos, pardos e indígenas (PPI) foi tema da matéria “USP: vindos de escola pública já são 47%“, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, na edição do dia 04/08/20. O texto destaca o índice de alunos ingressantes oriundos de escolas públicas e PPI na Universidade em 2020.
“O ensino melhora e fica mais realista. Imagina discutir urbanização de São Paulo só com jovens que moram nos Jardins? Para a USP interessa que esses jovens talentosos e brilhantes possam ingressar”, afirma o reitor Vahan Agopyan.
Leia, a seguir, a íntegra da matéria.
USP: vindos de escolas públicas já são 47%
“Mas você ganhou bolsa?”, costumam perguntar a Matheus quando ele conta a parentes e amigos que está estudando na Universidade de São Paulo (USP). Filho de mecânico e enfermeira, o jovem preto e pobre diz que até pouco tempo nem ele mesmo sabia o que era a USP. “As pessoas não têm noção de que é uma universidade pública”, diz Matheus Garbelim, de 22 anos, aprovado em janeiro para cursar Medicina.
Garbelim e outros 5.298 alunos ingressaram na USP em 2020 depois de estudarem em escolas públicas. Neste ano, o porcentual de novos alunos que vieram de colégios da rede pública chegou a 47,8% e a meta é alcançar 50% no ano que vem. A mudança de perfil já é sentida nos corredores da Universidade, mas, se houve aumento de oportunidades, cresce também a demanda por apoio à permanência. No contexto de crise econômica e sanitária provocada pela pandemia, dificuldades de acesso aos estudos e pressão para trabalhar elevam o risco de evasão dos alunos e de aumento das desigualdades.
No caso de Garbelim, as dificuldades começaram cedo. Na escola, não havia estudo direcionado para o vestibular – palavra que, aliás, só começaria a ser pronunciada no 3.º ano do ensino médio. “Às vezes nem aula tinha”, diz ele, que estudava na rede estadual em Campinas, no interior paulista. Foi depois que a mãe morreu, vítima de um câncer, que o jovem começou a vislumbrar uma trajetória diferente. “Substituí a dor do luto pelo estudo, mas não tinha representatividade, alguém que já tivesse trilhado. Eu mesmo tive de abrir o caminho.”
Em meio a futuros médicos endinheirados, ele acredita que traz discussões – com base na própria experiência – que antes passariam em branco, como a demora para receber atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). “O ensino melhora e fica mais realista. Imagina discutir urbanização de São Paulo só com jovens que moram nos Jardins? Para a USP interessa que esses jovens talentosos e brilhantes possam ingressar”, diz o reitor Vahan Agopyan.
Em 2017, o Conselho Universitário aprovou a reserva de vagas para alunos de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). Neste ano, a reserva em cada curso e turno deveria ser de 45%; no ingresso de 2021 e nos anos subsequentes, deverá atingir 50%. “Nosso maior objetivo não é o estudante entrar, mas ficar, se formar na USP”, diz Agopyan. Em 2020, 47,5% dos calouros tinham renda familiar bruta entre 1 e 5 salários mínimos e 52,5% tinham renda acima dos 5 salários mínimos.
Para Felipe Cavalcanti, de 19 anos, o auxílio de R$ 400 que recebe da USP é o que garante que possa se dedicar ao curso de Direito. Morador da periferia de São Paulo, ele entrou em uma das vagas para candidatos PPI depois de pagar o cursinho com o dinheiro que conseguia como jovem aprendiz. Nos primeiros dias de aula, sentiu o choque. “Um professor fez uma pergunta em latim e pensei: ‘mas quem vai saber latim?’ Até que um colega levantou a mão e respondeu.” Na quarentena, Cavalcanti estuda por meio de um computador velho, com a tela quebrada, e torce para que a mãe, funcionária de um supermercado, não perca o emprego – o que o obrigaria a paralisar os estudos. Para garantir acesso às atividades online, a USP ofereceu modem e chips de celular, mas nem 5% dos alunos, segundo o reitor, solicitaram o apoio.
Agopyan não descarta haver no ano que vem maior distância entre aprovados oriundos de escolas públicas e os da rede privada. Alunos de baixa renda enfrentam dificuldades para acompanhar aulas a distância, enquanto colégios particulares rapidamente se adaptaram ao modelo online. Até agora, não há indicação de mudança no grau de dificuldade da prova da Fuvest por causa da pandemia.
1 em cada 4 se diz preto, pardo ou indígena
O número de calouros em cursos de graduação que se autodeclararam pretos, pardos e indígenas (PPI) também aumentou em 2020, em relação ao ano passado. Dos 11.086 ingressantes, 2.897 pertencem a esse grupo, o que representa 26,1% do total de vagas. No ano passado, esse índice foi de 25,7%. Na reserva de vagas para alunos de escola pública também deve incidir porcentual de 37,5% de cotas para autodeclarados PPI, índice equivalente à proporção desses grupos no Estado.
Embora os dados evidenciem um esforço de inclusão, especialistas e alunos veem com ressalvas alguns avanços e pedem novas medidas. “Parte dos meus colegas vem de escolas técnicas, que são públicas, mas estudaram o fundamental 2 e 1 em particulares. Uma coisa a se pensar para os próximos anos é a faixa econômica. Olho para colegas e vejo pouquíssimos como eu”, diz Felipe Cavalcanti, de 19 anos, calouro de Direito.
Para Frei David, da ONG Educafro, deveria haver critério de renda. Ele argumenta que parte dos estudantes de escola pública que ingressaram na USP não precisaria da reserva de vagas. “Grande parte é de classe média, centenas de municípios de São Paulo são pequenos, não comportam uma escola particular. Lá estudam na pública o filho do prefeito, do juiz.”
Ele também aponta a necessidade de se aprimorar o sistema de verificação de autodeclaração. A USP só faz a verificação se um candidato é preto, pardo ou indígena caso ocorra denúncia pela comunidade acadêmica, o que, segundo Frei David, torna o processo oneroso, pouco eficiente e compromete o ingresso de novos alunos.
Segundo Vahan Agopyan, reitor da USP, após a consolidação da modalidade de reserva de vagas, a universidade vai estudar quais novas medidas podem ser tomadas para ampliar a inclusão. Já a verificação de todos os alunos que se autodeclaram PPI para evitar fraudes é vista pelo reitor como ação “policialesca”. “Não é porque tem (fraudes) que vamos punir todo mundo fazendo a exigência.”
Expulsão após fraude em cota
Em julho deste ano, a USP anunciou que um aluno do curso de Relações Internacionais foi expulso após denúncias de fraude em cotas raciais e sociais. Foi o primeiro na história da Universidade.
Além da expulsão, o estudante também não pode se matricular na instituição nos próximos cinco anos, de acordo com o Regimento Geral da Universidade. A denúncia foi feita por um coletivo negro formado por alunos de Relações Internacionais da USP.
As denúncias de fraudes na autodeclaração de pertencimento ao grupo de pretos, pardos e indígenas (PPI) do vestibular são analisadas pela Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP, instância ligada à Pró-reitoria de Graduação.