Pesquisa propõe olhar decolonial e intercultural para a questão dos refugiados

Em dissertação de mestrado, pesquisadora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) estudou refugiados com foco nos imigrantes venezuelanos no Brasil e sudaneses no Egito

 16/10/2023 - Publicado há 7 meses

Texto: Gabriela Ferrari Toquetti*
Arte: Carolina Borin**

Imigrantes venezuelanos cruzam a fronteira com o Brasil saindo de Paracaima em busca de abrigo em Boa Vista - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No mundo acadêmico, as referências mais utilizadas e conhecidas são as obras de autores europeus. Porém, o estudo de intelectuais de nacionalidades diversas, como do continente africano e da América Latina, é essencial para analisar, por exemplo, a questão dos refugiados. Essa foi a conclusão da dissertação de mestrado em Ciência Política intitulada O regime internacional para refugiados a partir da perspectiva decolonial: contribuições do Sul Global, desenvolvida por Thaynara de Lima Alves, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

pesquisadora concentrou sua análise no Sul Global, composto basicamente por países que estão fora do eixo Europa-Estados Unidos e que costumam ser descritos como “menos desenvolvidos”. Mais especificamente, Thaynara estudou os refugiados sudaneses no Egito e os venezuelanos no Brasil e na América do Sul. Existe uma série de estereótipos e paradigmas em relação aos migrantes do Sul Global e, de acordo com a pesquisadora, o uso de referências decoloniais (o termo refere-se à resistência ao colonialismo e à perpetuação da colonialidade) é importante para quebrar esses preconceitos. Por isso, a bibliografia da sua pesquisa incluiu autores de diversas nacionalidades.

Os refugiados ao longo da história

Além da bibliografia decolonial, Thaynara baseou-se em documentos internacionais relacionados aos refugiados. Ela explica que a Segunda Guerra Mundial criou um grande contingente de refugiados e isso deu origem à Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), primeiro tratado internacional sobre o refúgio. O documento, no entanto, só considerava refugiadas as pessoas de origem europeia, ignorando os impactos que a própria Europa causou em outros países com a colonização e o imperialismo.

Convenção de 1951 em Genebra, Suíça - Foto: British Red Cross/Flickr via Wikimedia Commons

Começaram a surgir, então, questionamentos do Sul Global sobre esse tratado, que não atendia às suas necessidades. Eles iam ao encontro de teorizações que mais tarde dariam corpo a um referencial decolonial. Em 1967, foi criado o Protocolo Sobre o Estatuto dos Refugiados como uma resposta a esses questionamentos. O novo documento passou a abranger pessoas de outras nacionalidades dentro do conceito de refugiados, mas não possuía poder suficiente para obrigar todos os países a adotar seu conteúdo.

Por causa disso, a África e a América do Sul, que sofriam os efeitos do imperialismo, formularam, respectivamente, a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1969, e a Declaração de Cartagena, em 1984, contemplando diversas causas para o deslocamento forçado. A criação dessas convenções representou uma tentativa de quebrar os resquícios coloniais.

Mas a Convenção de Genebra e o Protocolo Sobre o Estatuto dos Refugiados não adotaram os tratados do Sul Global. De acordo com Thaynara e com o referencial teórico que ela utilizou, os países europeus “têm o poder, devido a sua posição geopolítica, de diminuir outras convenções e chamá-las de regionais e de localizadas, como se elas não representassem o que é internacional e o que deve ser seguido pelo resto do mundo. Apenas padrões europeus são vistos como conhecimentos válidos e universais”.

Imigrantes sudaneses recebidos no Egito e que não eram reconhecidos legalmente como refugiados - Foto: British Red Cross/Flickr via Wikimedia Commons

O reconhecimento legal dos refugiados por parte do Estado garante seu acesso aos serviços públicos e à devida documentação. É por isso que o Sul Global luta para ampliar a definição de refugiados nas convenções – pois não querem estar em situação irregular perante o Estado.

Em 2005, o Egito recebeu imigrantes sudaneses, que não eram reconhecidos legalmente como refugiados. Para lutar por seus direitos, alguns desses imigrantes passaram a se autorreconhecer como refugiados e elaboraram um manifesto, obtendo apoio do grupo de estudos sobre migrações da Universidade do Cairo. Esse foi um “exercício da decolonialidade na prática”, segundo Thaynara.

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A pesquisadora estudou, ainda, o tratamento brasileiro ao fluxo de venezuelanos no País durante o governo Temer. Ela afirma que faltava suporte a esses refugiados, que foram recebidos no Brasil com recursos temporários em vez de soluções duradouras. Os venezuelanos, por sua vez, estavam em situação de grave violação dos direitos humanos em seu país de origem, com carência de necessidades básicas, como alimentação.

Nesse contexto, Thaynara analisou também a atuação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), órgão da ONU responsável pela questão do refúgio. O Acnur permitiu que o Brasil e os demais países do Sul Global que recebiam os venezuelanos adotassem a convenção latino-americana ou a africana, mas não fizeram a mesma recomendação na Europa. Os países europeus continuaram seguindo suas convenções antigas, demonstrando, mais uma vez, seu poder de moldar a identidade e os direitos da população mundial, de acordo com a pesquisadora.

Atualmente, Thaynara explica que, segundo seus referenciais de estudo, há uma manutenção da colonialidade – isto é, dos resquícios do pensamento e da prática colonial na modernidade. As ideias eurocêntricas estão presentes até hoje em diversas esferas da sociedade. São principalmente os países do eixo Europa-Estados Unidos que constroem o conhecimento, as convenções e as legislações, além de perpetuar estereótipos e preconceitos. É nítido, também, que as grandes potências têm poder de barganha e influência muito mais fortes do que outros países no cenário internacional.

A pesquisadora afirma que a transformação do olhar eurocêntrico e a quebra dos paradigmas em relação aos imigrantes são complexas e enfrentam muitos desafios burocráticos. Porém, a questão dos refugiados pode ser tratada com mais cidadania por meio de um olhar decolonial e intercultural.

Novos Cientistas - USP
Novos Cientistas – USP
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*Da Assessoria de Comunicação da FFLCH

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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